domingo, 29 de junho de 2008

Ensaio: Fusões permanentes

Esse ensaio foi publicado na Gazeta de Ribeirão do dia 31 de outubro de 2004.

Ensaio: Fusões permanentes

Charles Morphy D. Santos

O individualismo exacerbado nega a essência do ser vivo. Tanto quanto a luta pela sobrevivência preconizada por Charles Darwin, a cooperação é de fundamental importância para a vida desde os primórdios da evolução biológica, há aproximadamente quatro bilhões de anos. O comportamento da espécie humana, entretanto, parece ignorar esse fato, gerando desequilíbrios que afetam do fluxo energético no planeta às nossas próprias relações sociais.


Em meados do século XIX, paralelamente ao também naturalista inglês Alfred Wallace, Darwin propôs que os organismos viviam em ferrenha competição no ambiente natural, à procura de alimento, abrigo e parceiros para reprodução. Os portadores de características que garantissem o sucesso nessa luta seriam selecionados e sua carga genética mantida na descendência. Assim, sobreviveriam os mais aptos. Apesar do acerto de parte das suas afirmações, Darwin passou anos perturbado pelas possíveis ramificações, não restritas ao ambiente acadêmico científico, da sua teoria. Seus temores fizeram-se valer à medida que regimes totalitários utilizaram-se do darwinismo social para justificar teses racistas e segregacionistas, muitas vezes expressas em ideais persecutórios de eugenia (objetivando a dita purificação de suas linhagens).


Para os darwinistas estritos, a vida evolui a partir de mutações genéticas e recombinações cromossômicas ao acaso que passam pelo crivo da seleção natural. Entretanto, o que alguns ignoram é que a sinergia (do grego synergos, trabalhar junto) constitui um fenômeno essencial para a evolução e, portanto, não deve ser desconsiderada. A vida no planeta não teria o mesmo perfil, e talvez nem mesmo existisse nos moldes conhecidos, se a cooperação entre organismos não existisse.

Em 1967, a bióloga Lynn Margulis propôs o conceito de simbiogenêse para explicar como bactérias e outros microorganismos fundiram-se diversas vezes durante a evolução, originando novas espécies através da simbiose. Para ela, muitas das características que organismos complexos apresentam (por exemplo, a possibilidade de utilizar oxigênio para obtenção de energia ou de sintetizar compostos orgânicos a partir da luz do Sol) derivam da junção de dois ou mais microorganismos diferentes que passaram a viver uma vida comum através da cooperação. A contribuição de Margullis para o debate evolutivo enfatiza mais a sinergia entre as espécies do que a competição darwinista.

Entretanto, desde civilizações pré-históricas, as sociedades valorizam ao extremo a concorrência e a competição, por vezes desleal, em detrimento do comportamento cooperativo. Quando em conjunto, geralmente os grupos humanos agem em prol de interesses próprios, independente dos efeitos de suas atitudes no coletivo. Quanto maior o poder e a estatura social, mais se acompanha a regra tola (epíteto do capitalismo corrente), da “lei do mais forte”. Toma-se a cooperação – imediatista, hipócrita – apenas como escada para a cobrança de favores futuros. O comportamento humano em relação ao ecossistema do qual faz parte é ainda mais individualista, apoiado na errônea idéia de sua superioridade evolutiva.

Antagonicamente, a ciência diz que o gene não é egoísta. A vida na Terra é holárquica, uma grande cadeia de seres vivos conectados e coexistindo sem nenhuma forma de controle de uns sobre os outros. Não há hierarquia alguma que alce a espécie humana ao topo.

Em tempos duros como os atuais, a não observância do individualismo e a descrença na competição para a vitória unilateral são as únicas maneiras de se restabelecer o equilíbrio natural há muito perdido, e de se chegar à compreensão de que há um sistema físico subjacente a todo o mundo orgânico do qual somos apenas mais um dos componentes.

sábado, 21 de junho de 2008

Ensaio: Tahl e as verdades incontestáveis

Esse ensaio saiu na Gazeta de Ribeirão do dia 12 de setembro de 2004.

Tahl e as verdades incontestáveis

Charles Morphy D. Santos

Mikhail Tahl foi um dos maiores enxadristas que o mundo conheceu, comparado em genialidade e excentricidade aos unânimes Bobby Fischer e Paul Morphy. Dono de uma língua ferina, certa vez, quando perguntado sobre seu estilo agressivo de jogo, Tahl respondeu: "Há três tipos de sacrifícios: os corretos, os incorretos, e os meus" . Como a maioria dos grandes campeões do esporte, Tahl confiava acima de tudo na sua própria capacidade de controlar uma situação surgida nas sessenta e quatro casas do tabuleiro, a fim de chegar a um desfecho favorável. Esse comportamento é corriqueiro também no mundo científico. Entretanto, a ciência nem sempre ganha com a excessiva confiança dos seus praticantes. A complexidade da vida é bem maior que o número de variantes possíveis em uma partida de xadrez e não pode ser mensurada em uma bancada de laboratório.
Parte dos cientistas acredita cegamente nos resultados de suas pesquisas e no seu controle sobre elas. Alguns o fazem por ingenuidade, outros por incompetência. Esses deslumbramentos são divulgados pela mídia com desmedido entusiasmo. Projeto Genoma, utilização de células-tronco, alimentos transgênicos: é longa a lista de áreas promissoras da biologia alardeadas como furos jornalísticos. As possíveis e prováveis conseqüências desses estudos, seus pormenores e idiossincrasias, geralmente ficam fora das primeiras páginas e dos pronunciamentos em horário nobre. Assim, concepções errôneas são propagadas, fornecendo combustível para questionamentos vazios e sem fim em torno de nada tangível.
É certo que o conhecimento científico deve ser levado ao grande público. Entretanto, como qualquer atividade humana, também a ciência tem sua própria sociologia, seus conflitos de interesse e contradições insolúveis. Os bastidores do mundo científico escondem guerras de ego, brigas, vaidade, e, sobretudo, cobiça. A realidade da academia não destoa do mundo fora dela. Afinal, somos todos humanos.
Grandes mentes e grandes projetos muitas vezes rendem-se a grandes verbas oferecidas por grandes multinacionais. Organizam-se verdadeiras operações de guerra para cooptar os corações e mentes de quem quer que interfira com posições contrárias. Para os que insistem no embate resta o ostracismo ou o monólogo.
O projeto Genoma humano, por muitos considerado a maior realização científica do século XX, não passa do reconhecimento das bases nucleotídicas que compõem o material genético da nossa espécie. É como conhecer as letras impressas nas páginas de um livro imenso sem saber o que significam juntas. Há muito trabalho a ser feito a partir daí.
Os alimentos transgênicos, que são modificados através da inserção, no seu material genético, de partes de DNA de outra espécie, interessam muito mais às corporações internacionais do que à vasta população carente de comida. Lucro, controle da cadeia produtiva, mais lucro, vendas, dominação dos mercados. Ouvem-se poucas vozes importantes (abafadas) a falar sobre os riscos e dúvidas sobre a implementação desses organismos no ambiente. Ao grande público sobram os ditos imperiosos das sumidades, que se presumem titereiros debruçados sobre as cordas e o destino de suas criações. Esses exemplos não esgotam o assunto.
A ciência não quer a certeza, mas busca aproximar-se dela. Não há como controlar todas as variáveis das equações da natureza, como Tahl fazia com seus peões, cavalos e torres, e essa impossibilidade precisa ser considerada pelo público não especializado como parte do jogo científico. Assim, a população pode cobrar a verdade por trás das promessas de tantos admiráveis mundos novos que aparecem a cada dia.

segunda-feira, 16 de junho de 2008

Ensaio: Manipulando genes

Esse ensaio saiu na Gazeta de Ribeirão do dia 01 de agosto de 2004.

Manipulando genes
Charles Morphy Dias dos Santos


Quimeras, mantícoras, basiliscos, centauros. A literatura está repleta de seres fantásticos. Tecnicamente chamados de híbridos, são como uma colcha costurada a partir de retalhos de organismos diferentes, fundindo animais tão díspares quanto uma serpente e um escorpião. O medo e o fascínio provocados por essas extravagâncias zoológicas remontam à antiguidade grega, chegam ao apogeu nos bestiários medievais, e encontram eco nos nossos dias. Os outrora monstros imaginários, entretanto, são hoje organismos modificados em laboratórios de biologia molecular.
A célula é a unidade fundamental dos seres vivos (com exceção dos vírus, que são acelulares). Ela é basicamente um envoltório contendo uma solução aquosa e o material genético, o DNA. Torcidas em hélice, as duas fitas do DNA são compostas por pequenas unidades de informação, os genes, determinantes das características de um indivíduo (o ambiente também é essencial nessa caracterização. Se Einstein tivesse nascido entre beduínos, sem acesso à escola, dificilmente teria imaginado a teoria de relatividade).
Organismos geneticamente modificados, ou transgênicos, contêm genes de outras espécies incorporados ao seu DNA. Essa manipulação é decidida nas bancadas dos laboratórios, e, se aplicada à indústria alimentícia, pode criar híbridos com propriedades adicionais, tais como arroz com altas concentrações de betacaroteno (abundante na cenoura) e grãos de soja resistentes ao ataque de insetos.
Da forma como são mostrados ao público, esses alimentos seriam de grande valia. Por que não liberar a comercialização de farinha de trigo modificado, com alto teor nutricional? As discussões a respeito não giram apenas em torno de demagógicos jogos de poder? Infelizmente, por trás das camadas de tinta publicitária, o cenário é mais dramático.
A atual diversidade biológica resulta de quase quatro bilhões de anos de evolução, durante os quais ocorreram muitos processos de transferência de genes. A manipulação genética dos transgênicos, porém, ignora o impacto ambiental a longo prazo da criação de híbridos. Defensores dos alimentos geneticamente modificados justificam sua existência apresentando testes que perfazem as últimas décadas, um intervalo irrisório se comparado à escala de tempo geológica.
Acabar com a fome também não é um objetivo válido, apesar de louvável. Sabe-se que a produção atual de alimentos é suficiente para abastecer todo o planeta. Falta distribuí-los, o que esbarra em impedimentos estratégicos e interesses de grupos empresariais que lucram com a escassez. Não obstante, transgênicos são patenteados como qualquer produto da indústria. O seu monopólio é fonte certa de altas somas para poucos.
Longe de se esgotar em poucas linhas, a questão dos híbridos não-naturais é de suma importância no panorama político-científico mundial. Ser favorável aos transgênicos, diferente do que seus partidários apregoam, não é defender a liberdade científica. As conseqüências da inserção de organismos geneticamente modificados no ambiente natural são desconhecidas e talvez catastróficas, bem mais assustadoras do que o bater de asas de um grifo.