quarta-feira, 30 de julho de 2008

Sobre blogs de ciências

"Tudo o que tem a fazer é escrever uma frase verdadeira. Escreva a frase mais verdadeira que souber (...) Se começasse a escrever rebuscadamente, ou como se estivesse defendendo ou apresentando alguma coisa, achava logo que podia cortar esses floreados ou ornamentos, jogá-los fora e começar com a primeira proposição afirmativa verdadeira e simples que tivesse escrito".
Ernest Hemingway, A moveable feast (Paris é uma festa), p. 29

O filósofo John Wilkins, no seu artigo The roles, reasons and restrictions of science blogs, publicado na edição de agosto da Trends in Ecology and Evolution, define um blog como "fundamentalmente uma página da web atualizada constantemente, com entradas ('postagens') que têm uma data, tempo e, se muitos autores contribuírem para o blog, selos com autor e nome". Para ele, um das razões flagrantes para a existência de blogs é a comunicação científica. Além disso, essa também é uma forma de desmistificar a ciência e de fazer frente a perspectivas contrárias, presentes no discurso público (e.g., anti-evolucionistas), àquelas científicas. Ainda segundo Wilkins, um blog que representa uma comunidade científica ou subdisciplina irá ele mesmo se transformar em uma comunidade.

Tomadas em conjunto, essas idéias parecem expressar, no geral, o que pensam as pessoas que se dedicam a escrever nesses veículos que - erroneamente - são considerados como web 2.0 (essa denominação foi usada inclusive no artigo sobre blogs científicos veiculado na edição de julho da Scientific American Brasil. A tal web 2.0 - discutida por muitos teóricos que trabalham com cibercultura, entre eles o brasileiro André Lemos - demandaria muito mais interação e possibilidade de interferência que o simples postar-comentar-responder dos blogs). Porém, há sempre o outro lado da moeda, que o próprio Wilkins lembra: blogs carecem de controle de qualidade e editoração adequada. Além disso, ainda há o preconceito da "velha guarda" da ciência (sem conotação pejorativa), que privilegia o trabalho "real" em detrimento do que é divulgado na rede.

Assim como o papel das revistas de hard-science, blogs são meios para a divulgação de idéias. É inocente quem pensa que o trabalho publicado (impresso) passa por um crivo tão grande de qualidade quanto seria de se esperar - basta relembrarmos dos recentes episódios de manipulação de dados em artigos da prestigiada Science. Além do mais, mesmo publicações de menor índice de impacto, mas de vital importância para áreas específicas das ciências, também têm problemas com o peer-review. Pesquisadores da "periferia" da ciência, como os brasileiros, sempre sofrem mais para terem seus artigos publicados, sendo eles valiosas contribuições para o campo de escrutínio ou não. Enquanto isso, profusões de textos "copy-and-paste" saem todos os meses, mais onerando do que desenvolvendo as ciências como um todo.

Nesse ínterim, o que talvez conspire contra os blogs seja o próprio rótulo 'blog', comumente relacionado a diários pessoais on-line que, para muitos, caracterizam a geração e-mail (geração web? geração internet? geração orkut?). Blogs científicos podem significar muito mais do que isso. Para tanto, ao serem preparados, e independentemente da linha de argumentação ou do assunto comentado, as postagens precisam ser cuidadosamente construídas e divulgadas. É claro que a ciência exposta não deve ser vetusta e hermética, sob o risco de afastarmos ainda mais o público já pouco afeito a exposições aprofundadas sobre o conhecimento científico. No entanto, não há motivos para que uma postagem em um blog não seja tão zelosa sobre seu conteúdo e forma quanto um texto para uma revista tradicional. Quem leu o artigo do Wilkins pôde perceber claramente que não há nada ali que já não havia sido discutido anteriormente na própria blogosfera.

Um outro aspecto interessante, levantando no Roda de Ciência, diz respeito ao papel dos blogs na educação. Escrevi anteriormente em um artigo publicado na Ciência Hoje e apresentado aqui em uma versão "sem cortes" o seguinte parágrafo:

"A aula não pode se ater à superficialidade dos livros didáticos, devendo ser acrescida das discussões filosóficas e históricas pertinentes. A leitura é fundamental para o professor, incluindo as obras originais e compêndios sobre os tópicos estudados. Atualmente, há ferramentas disponíveis na internet, tais como blogs, revistas de divulgação online, portais com obras completas de autores consagrados das ciências e da filosofia, e sítios com apresentações, exercícios e documentários que podem ser importantes fontes de informação para o docente – e também para os alunos, especialmente quando orientados de forma adequada".

Blogs não são substitutos da divulgação tradicional (em papel) e não devem ser vistos dessa forma. Não obstante, eles são ferramentas complementares, que permitem uma dimensão extra para a publicação da pesquisa científica, com recursos próprios que permitem grande dinamismo e um maior alcance para o que é discutido. Obviamente, a importância dos blogs para a comunidade científica ainda não pode ser analisada em uma perspectiva histórica, mas seu impacto no ensino de ciências, por exemplo, pode ser notado por muitos dos que utilizam tal ferramenta.

Independentemente do rótulo, o que se escreve deve ser "verdadeiro", como Hemingway diz. O meio faz parte, mas não é ele próprio a mensagem.

PS: Wilkins reclamou em seu blog da tradução do seu artigo publicada no Roda de Ciência. Ao meu ver, sua atitude foi arrogante e contrária ao espírito da blogosfera científica. Apesar de idioma universal das ciências, o inglês não é o único. A idéia da tradução foi facilitar o acesso à informação para aqueles que não podem conseguir o artigo original ou não conseguiriam decifrá-lo. De qualquer maneira, como foi comentado acima, não há idéias originais no artigo de Wilkins - ele simplesmente é um síntese.

Este post pertence ao Roda de Ciência. Por favor, insira seus comentários aqui.

terça-feira, 29 de julho de 2008

Ensaio: Ponto brilhante na escuridão



Esse ensaio foi publicado no número 31 da Gazeta de Ribeirão, no dia 16 de janeiro de 2005. O título faz referência a um dos livros do astrônomo e extraordinário divulgador da ciência Carl Edward Sagan (1934-1996), O Mundo Assombrado Pelos Demônios - A ciência como uma vela no escuro (republicado recentemente pela Companhia das Letras em uma edição de bolso).
Sagan é responsável por uma vasta obra de popularização do pensamento científico, sempre se preocupando em tornar a ciência atraente para o público leigo sem, no entanto, superficializar ou distorcer conteúdos. É impossível assistir à sua série Cosmos e não se emocionar com o poder da ciência em desvendar as particularidades da natureza. Muitos dos livros de Carl Sagan foram traduzidos para o português e podem ser facilmente encontrados em livrarias e algumas bibliotecas.



Ponto brilhante na escuridão

Charles Morphy D. Santos

O ano de 2004 terminou com a morte de centenas de milhares de pessoas vítimas da tsunami que varreu a região costeira de alguns países banhados pelo Oceano Índico, promovendo um cenário catastrófico poucas vezes vistos na história recente da humanidade, exceção feita talvez aos genocídios cometidos durante as guerras e os governos totalitários do século XX. Tão logo os primeiros informes aportaram nas TVs e jornais de todo o mundo, vozes levantaram-se à procura de causas para a tragédia, muitas delas (incluindo a mídia dita especializada e os comentaristas prontos a despejar sobre o público sua sabedoria e assertivas mordazes) insinuando que o maremoto fora uma resposta da natureza aos impropérios contra ela cometidos por nossa espécie. De maneira análoga, muitos acreditam que antes do aparecimento do homem não havia fenômenos como o aquecimento global provocado pelo efeito estufa, ciclones e chuvas destruidoras, desconsiderando conceitos científicos simples e pesquisas que procuram entender como esses eventos têm alterado o planeta desde a sua formação, há cerca de 4,5 bilhões de anos. Como uma luz norteando a viagem pelo desconhecido, a ciência busca compreender o mundo sem apelar para a ira divina ou vendetas da natureza, legando ao homem o papel de participante e não de agente majoritário de todos os fenômenos naturais que nos assolam.

A Terra é composta por um “quebra-cabeça” de placas tectônicas interconectadas e em constante movimento - o que explica, por exemplo, o distanciamento constante entre a América do Sul e a África, que formavam uma única massa de terra há 140 milhões de anos. Como a maioria deve saber, a tsunami que atingiu os continentes asiático e africano teve origem em um deslocamento tectônico no meio do oceano, que culminou na formação de uma onda gigantesca. Apesar da impossibilidade de se controlar tal evento geológico, a tragédia era inevitável? Não. Se os governantes locais e autoridades responsáveis tivessem alguma visão científica ou fossem assessorados por pessoal competente, investimentos na implantação e desenvolvimento de tecnologias teriam impedido, ou minimizado, a perda de vidas.

Hoje, a ciência é fundamental para a sobrevivência do homem. De uma maneira efetiva e abrangente, e não como era feito nos antigos cursos de Educação Moral e Cívica que tentavam incutir nos estudantes algum amor pelo seu país, as escolas deveriam estimular os alunos, desde a infância, a pensar de forma crítica e cética, sem despejar-lhes pseudo-ciências desprovidas de conteúdo e da beleza inerentes às explicações científicas sobre o mundo natural. Aprofundar questões científicas é saudável para a sociedade pois o emprego da dúvida como princípio orientador evita a confiança cega e a idolatria, fundamentos do charlatanismo e da corrupção. Infelizmente, como cita o astrônomo Carl Sagan, “é muitíssimo mais fácil apresentar de modo atraente a sabedoria destilada durante séculos de interrogação paciente e coletiva da natureza do que detalhar o confuso mecanismo de destilação”. E, assim, assistimos impotentes à profusão de medicamentos alternativos, histerias coletivas baseadas na tendência do dia e seitas que prometem felicidade e casas com piscina.

Diferentemente da maioria das religiões e das pseudo-ciências, o pensamento científico beneficia-se do ceticismo e cresce a partir dele. Isso não significa que o cientista é um rabugento e insolente, mas alguém que admira o mundo natural e tenta explicá-lo à luz de evidências testáveis. A ciência protege-nos da ignorância. Por conseguinte, investir em ciência é garantir o bem-estar social em todos os níveis, mantendo acesa a chama de uma vela que ilumina nosso caminho escuro assombrado por demônios.

sábado, 26 de julho de 2008

Bertrand Russell

Bertrand Russell (1872-1970) foi filósofo, lógico, matemático e escritor vencedor do Prêmio Nobel de Literatura, em 1950. O trecho a seguir é parte do ensaio Sonhos e fatos, que pode ser encontrado na coletânea Ensaios Céticos, lançada pela L&PM no começo de 2008. Com uma das prosas filosóficas mais elegantes do século XX, os livros de Russell são leitura recomendada e obrigatória para todos aqueles que baseiam suas vidas no racionalismo e no ceticismo (consciente).

“Os sonhos de um homem ou de um grupo podem ser cômicos, mas os sonhos humanos coletivos, para nós que não podemos ultrapassar o círculo da humanidade, são patéticos. O universo é muito vasto, como revela a astronomia. Não podemos dizer o que existe além do que os telescópios mostram. Mas sabemos que é de uma imensidão inimaginável. No mundo visível, a Via Láctea é um fragmento minúsculo; e, nesse fragmento, o sistema solar é uma partícula infinitesimal, e, dessa partícula, nosso planeta é um ponto microscópico. Nesse ponto, pequenas massas impuras de carbono e água, de estrutura complexa, com algumas raras propriedades físicas e químicas, arrastam-se por alguns anos, até serem dissolvidas outra vez nos elementos de que são compostas. Elas dividem seu tempo entre o trabalho designado para adiar o momento de sua dissolução e a luta frenética para acelerar o de outras do mesmo tipo. As convulsões naturais destroem periodicamente milhares ou milhões delas, e a doença devasta, de modo prematuro, mais algumas. Esses eventos são considerados infortúnios; mas quando os homens obtêm êxito ao impor semelhante destruição por seus próprios esforços, regozijam-se e agradecem a Deus. Na vida do sistema solar, o período no qual a existência do homem terá sido fisicamente possível é uma porção minúscula do todo; mas existe alguma razão para esperar que mesmo antes desse período terminar o homem tenha posto fim à sua existência por seus próprios meios de aniquilação mútua. Assim é a vida do homem vista de fora.”
Bertrand Russell, Ensaios céticos, p. 32-33.

quarta-feira, 23 de julho de 2008

Para quando a ciência falha...



Hoje em dia, é possível se fazer ciência sem financiamento? Cada vez mais parece que os "entusiastas" da pesquisa científica, que trabalham por paixão e não contam com bolsas ou qualquer tipo de auxílio, têm perdido espaço e quase desaparecido.
Talvez a ciência tenha atingido um grau de profissionalismo tamanho que afasta os "amadores". Não há produção científica independente, como acontece no cinema, por exemplo. Isso é bom ou, ao dificultar (ou mesmo impossibilitar) o acesso aos métodos e práticas científicas a um número maior de pessoas, a academia acaba por tornar-se engessada e auto-referente?

sexta-feira, 18 de julho de 2008

A importância da filosofia da ciência - IV

Essa sim é a parte final do artigo, publicado (em uma versão reduzida) na revista Ciência Hoje de Novembro de 2004 (volume 35, número 210, páginas 59-61).


Filosofia e ensino de ciências: uma convergência necessária – parte 4

Na sala de aula, a contextualização histórica das teorias científicas mostrará aos alunos que os praticantes da ciência não são trabalhadores solitários, fechados em seus laboratórios, e sim homens de um tempo, inseridos em um contexto social amplo e que recebem influências, assim como influenciam outros pesquisadores e personagens de seu período. Para estar apto a apresentar esse quadro, antes de qualquer coisa, a boa formação do professor é imprescindível.

A aula não pode
se ater à superficialidade dos livros didáticos, devendo ser acrescida das discussões filosóficas e históricas pertinentes. A leitura é fundamental para o professor, incluindo as obras originais e compêndios sobre os tópicos estudados. Atualmente, há ferramentas disponíveis na internet, tais como blogs, revistas de divulgação online, portais com obras completas de autores consagrados das ciências e da filosofia, e sítios com apresentações, exercícios e documentários que podem ser importantes fontes de informação para o docente – e também para os alunos, especialmente quando orientados de forma adequada.

É papel do professor aproximar os alunos do conhecimento científico moderno, mostrando-lhes que novas teorias sempre partem de idéias prévias (em menor ou maior grau), seja sob a forma de aperfeiçoamentos e refinamentos de hipóteses existentes ou através de críticas profundas a teorias possivelmente ultrapassadas e com menor poder explanatório que as novas proposições. A ele cabe tratar a ciência como um processo contínuo, não hermético, de corroboração e refutação de teorias, melhorias e rearranjos de hipóteses, e constante busca por evidências, possibilitando ao aluno aceitar o novo e estimulando, paralelamente, a reflexão e a análise crítica, com criatividade e imaginação.

Por vezes, nota-se a convergência entre a perspectiva histórico-falseacionista e algumas correntes do construtivismo, uma vez que estas defendem a inserção do aluno na prática do ensino, utilizando e valorizando seus saberes. Certos modelos construtivistas, contudo, podem levar à desvalorização da prática do ensino por não incentivarem a construção do conhecimento fundamentado cientificamente, dando demasiado valor ao senso comum. A supervalorização da experiência sensorial como fonte única geradora de conhecimento cria problemas tanto para a compreensão quanto para a formulação de conceitos. A abordagem voltada excessivamente para o senso comum deve ser evitada pelo professor, o que não significa tratar como irrelevantes os saberes trazidos à sala de aula, e sim partir desse corpo de informações – obtido, via de regra, pela televisão, revistas, jornais e internet – para demonstrar como a ciência é geralmente tratada de forma superficial e deficiente, com vistas a uma formação mais sólida de alunos interessados tanto nos produtos finais quanto no processo de construção do conhecimento científico.

Assumir que a investigação científica não termina com os resultados obtidos nos laboratórios, mas parte de hipóteses de trabalho iniciais para se desenvolver, é um dos caminhos para um ensino de ciências menos apático e mais associado à prática científica. O estímulo à reflexão e à crítica fundamentadas, a partir de uma abordagem histórico-falseacionista, pode auxiliar, assim, na propagada formação de cidadãos conscientes, capacitados a avaliar problemas da sua sociedade sob pontos-de-vista diversos, e que não simplesmente aceitam, sem questionamento, o que lhes é imposto.

domingo, 13 de julho de 2008

A importância da filosofia da ciência - III

Diferentemente do que foi dito, as modificações no ensaio original forçaram a sua divisão não em três, mas em quatro partes. Essa é a terceira parte do artigo, publicado em uma versão reduzida na revista Ciência Hoje de Novembro de 2004 (volume 35, número 210, páginas 59-61).

Filosofia e ensino de ciências: uma convergência necessária – parte 3

As teorias científicas não podem ser dissociadas do ambiente em que foram criadas, e isso independentemente do modo como surgiram: através de insights, sonhos, estudo, trabalho árduo. A teoria da evolução é um exemplo. Tida como o princípio unificador da biologia, ela quase sempre é considerada pela grande mídia ou pelos livros didáticos como o produto da mente brilhante do naturalista inglês Charles Darwin (1809-1882), desconsiderando todos os seus inúmeros predecessores e as influências que construíram o arcabouço que tornou possível a delimitação desse programa de pesquisa tão abrangente. Quando a teoria evolutiva for exposta e comentada em aula, vale a pena reconstruir o histórico da sua construção – mesmo que de maneira generalizada –, além dos problemas e questões levantadas e, principalmente, os erros cometidos pelos pesquisadores anteriores e posteriores à Darwin (e mesmo os do próprio Darwin!), da antigüidade grega aos tempos atuais, e suas implicações.

Um dos exemplos mais acabados de figura histórica negligenciada é o francês Jean-Baptiste Lamarck (1744-1829). Ele teve importância capital no desenvolvimento do evolucionismo, apesar de suas hipóteses errôneas referentes ao uso e desuso e à herança dos caracteres adquiridos – que não eram criação dele, remontando ao pensamento aristotélico, e que toda a comunidade científica da época tomava como quase certas. Poucos livros didáticos mostram Lamarck (figura ao lado) como um pioneiro da crítica ao ‘fixismo’ na biologia, por ter enfatizado o papel do tempo para a origem das espécies, hipótese aproveitada pelas teorias evolutivas posteriores.

A teoria lamarckista era condizente com uma das correntes filosóficas predominantes na Europa dos séculos XVII-XIX, para a qual a natureza estava sempre em harmonia (equilíbrio). Sendo assim, para Lamarck, a única maneira da manutenção do equilíbrio do mundo natural, cujas mudanças constantes eram perceptíveis, seria a ocorrência de alterações também nos organismos. A idéia de que as espécies se transformavam no tempo, dando origem a espécies diferentes, era diametralmente oposta à perspectiva essencialista, segundo a qual à tudo no mundo natural corresponde uma essência fixa, imutável. Além disso, Lamarck cunhou o termo biologia e foi só a partir dele que passaram a ser analisadas as características comuns a todos os seres vivos, que permitiam que fossem estudados por uma área da ciência especificamente voltada a eles.

Além de Lamarck, é necessário destacar o papel do naturalista britânico Alfred Wallace (1823-1913), também pai da teoria da evolução pela seleção natural mas no geral desconhecido pelo grande público. Foi a partir da publicação conjunta em 1858, na mesma edição da revista da sociedade real britânica, de um artigo de Wallace (figura ao lado) e um de Darwin, que o evolucionismo passou a ser discutido de fato, agora baseado em um processo de seleção das variedades que, de alguma maneira, tivessem maior sucesso reprodutivo que outras. O Origem das espécies de Darwin – que traz ecos do trabalho de Wallace – só viria a ser publicado no ano seguinte.

O pensamento evolutivo moderno deve muito a autores como Conde de Buffon, Erasmus Darwin, Lamarck, Leopold von Buch, Wallace – predecessores ou contemporâneos de Darwin – e também a muitos autores que desenvolveram as idéias darwinianas iniciais, ajudando a moldar o que conhecemos hoje como teoria da evolução (August Weissman, Ernst Mayr, Theodosius Dobzhansky, James Watson, Francis Crick, Alfred Wegener, Willi Hennig, León Croizat, Stephen Jay Gould, Richard Dawkins e uma série de outras figuras proeminentes nas ciências naturais nos século XX e começo do XXI).

sábado, 12 de julho de 2008

Para quando a ciência falha...



Em homenagem ao grande Almir Teixeira (jornalista e músico), a seção "Para quando a ciência falha..." vai trazer cartoons, quadrinhos e situações inusitadas sempre relacionadas ao pensamento científico e aos bastidores da academia.
Porque a ciência não precisa ser chata, hermética ou mal humorada!
Sobre a figura aqui de cima, um comentário: tirar conclusões a partir dos fatos (sem teorias prévias) não é beeem o método científico (isso é indução, quando se infere uma hipótese a partir da observação de um conjunto particular de evidências). E falar em "método" criacionista é alimentar demais a confiança que os religiosos têm em suas próprias palavras...

sexta-feira, 11 de julho de 2008

Na revista Piauí de março



Esse artigo saiu na edição de março de 2008 da revisa Piauí. Foi escrito por Otávio Frias Filho, jornalista e diretor de redação da Folha de S. Paulo. Ele publicou Queda Livre, pela Companhia das Letras, e o Livro da Primeira Vez, pela Cosac Naify. O artigo é a condensação de um ensaio que será publicado em livro (a ilustração acima é do artista plástico Nuno Ramos, autor de Ensaio Geral, publicado pela editora Globo).
Apesar de um pouco tendencioso em certos trechos, é um ensaio bem escrito e sem erros conceituais graves, funcionando como uma boa introdução a aspectos fundamentais da história do pensamento evolutivo de Darwin e a algumas das consequências da teoria da evolução para o pensamento humano moderno.

Darwin e seus descendentes

Otávio Frias Filho

Um fantasma ronda as ciências humanas: o fantasma do darwinismo. O assédio começou em meados do século passado, nos confins de uma disciplina então incipiente, a etologia, que estuda o comportamento animal. O pressuposto desses pioneiros, zoólogos darwinistas, era que o comportamento contribui para um maior ou menor sucesso evolutivo, sobretudo entre os animais sociais, os que cooperam entre si. Por conseqüência, também os comportamentos devem ter sido “selecionados” em termos evolutivos. Ou seja, teriam predominado ao longo do tempo as condutas que propiciam a seus portadores viver mais e deixar prole mais numerosa

As espécies sociais existem em vários ramos da natureza. Além das formigas, abelhas, vespas e cupins, o grupo inclui determinados peixes, aves e mamíferos – entre estes, os homens. Não tardou para que extrapolações da etologia fossem aplicadas, de maneira cautelosa e especulativa, à espécie humana. Os próprios etólogos foram os primeiros a ressalvar que, no caso da humanidade, a herança biológica se mescla à cultural, formando um amálgama impenetrável. Por imensa que seja a variação cultural entre os homens, no entanto, para esses autores ela sempre será expressão de uma matriz genética e inconsciente, adquirida de forma evolucionária nos 5 milhões de anos desde que nos destacamos dos símios. (O texto na íntegra pode ser encontrado no site da revista Piauí).

quinta-feira, 10 de julho de 2008

A importância da filosofia da ciência - II

Essa é a parte dois do ensaio publicado originalmente na revista Ciência Hoje de Novembro de 2004 (volume 35, número 210, páginas 59-61).


Filosofia e ensino de ciências: uma convergência necessária – parte 2

A filosofia da ciência (especialmente a perspectiva popperiana) pode servir como guia para várias etapas do processo de ensino- aprendizagem, em diferentes níveis do ensino. Ao assumi-la desde o preparo da aula até a sua exposição, o professor aproximará o aluno do processo de construção da ciência, levando-o a desenvolver uma concepção própria do mundo natural sem perder a noção dos princípios científicos. A orientação do professor deve deixar claro que a ciência não é apenas o reflexo de sensações individuais sobre o mundo, mas uma fusão destas às hipóteses e teorias construídas na tentativa de explicar a realidade para além do que é percebido por nossos sentidos físicos.

O positivismo ainda presente na prática pedagógica desconsidera o aluno como sujeito da ação científica e o transforma em simples receptor passivo do produto ‘final’ dessa atividade. Tratar a ciência como verdade absoluta, resultado do trabalho de cientistas geniais, desestimula e distancia o aluno, desvinculando o ensino de ciências da própria ciência. A atividade científica procura se aproximar da verdade - dentro de um ponto-de-vista de que existe uma realidade subjacente - mas não propõe SER ela a própria verdade. A partir do momento que uma teoria científica for considerada verdadeira, no sentido de que não pode ser questionada ou falseada por hipóteses alternativas ou evidências adicionais, ela deixa de fazer parte do domínio da ciência.

A ciência deve ser vista como uma atividade passível de erros – fundamentais na construção do conhecimento – desempenhada por pesquisadores atuantes em uma comunidade científica que faz parte do complexo de relações e interações da sociedade. A desmistificação do cientista também recairá sobre o professor, a partir do momento em que ele apresentar seu campo de estudo como aberto a mudanças e críticas. Para o educador brasileiro Maurício Tragtenberg (1929-1998), o professor é dono de um saber inacabado e o aluno de uma ignorância transitória.

Considerar o contexto histórico durante a exposição dos conteúdos evita a distorção da real prática da ciência e permite ao professor definir essa atividade como a busca pela compreensão da natureza, pela solução de problemas e pela geração de tecnologias dentro de um determinado contexto social. Cientistas não vivem em torres de marfim, isolados do mundo externo, enlouquecidos pelo seu trabalho e suas experiências. Aquela imagem do pesquisador com os cabelos eriçados e a roupa amarrotada não condiz (muito) com a prática corriqueira da atividade científica, a qual, obviamente, têm suas idiossincrasias, mas que não se distancia tanto de outros ramos do conhecimento.

Uma possível complicação da abordagem histórico-filosófica no ensino está no fato de que o professor se arrisca a encenar um monólogo ao propor a troca, por parte dos alunos, da certeza do senso comum pela incerteza científica. Nesse caso, o resultado poderia ser um aumento ainda maior do desinteresse do estudante em relação à ciência. É importante considerar essa possibilidade, embora ela signifique um julgamento negativo, a priori, das qualidades e potencialidades dos alunos, além de também desconsiderar a capacidade do docente de envolver e estimular a sala com o seu discurso. Nesse sentido, ferramentas didáticas complementares à aulas expositivas são bem-vindas.

terça-feira, 8 de julho de 2008

A importância da filosofia da ciência

Esse ensaio (escrito em colaboração com o Dr. Adolfo R. Calor, também da USP de Ribeirão Preto), foi publicado originalmente na revista Ciência Hoje de Novembro de 2004 (volume 35, número 210, páginas 59-61). Ele discorre a respeito de como conceitos epistemológicos básicos (além de uma noção da perspectiva histórica do pensamento científico) podem ajudar no ensino de ciências. O texto – com algumas modificações em relação à sua versão impressa – vai ser postado aqui em três partes.


Filosofia e ensino de ciências: uma convergência necessária – parte 1

A importância da filosofia para o ensino de ciências tem sido há muito negligenciada. Muitas das discussões de pensadores como Popper, Kuhn, Lakatos e Feyerabend podem ser utilizadas para a construção de modelos pedagógicos que rompem com o tradicional caráter linear e atemporal do ensino, substituindo-os por uma visão mais dinâmica do processo ensino-aprendizagem.

O filósofo austríaco Karl Popper (1902-1994) considera a imaginação o princípio motor da ciência. Segundo ele, cientistas formulam hipóteses e estas são testadas através da experimentação. Se tais hipóteses mostrarem-se inadequadas, criam-se outras, que serão sujeitas a novos testes, em um processo contínuo que aumenta o poder explanatório das teorias, aproximando-as cada vez mais da verdade. A ciência é essencialmente transitória, pois, em um dado momento, a melhor teoria é a que melhor suporta as tentativas de refutação. Assim, o pensamento científico se desenvolve através da relação indissociável entre hipóteses, confirmações e refutações. A atitude crítica é fundamental: aprendemos com os erros.

Para Popper, apenas hipóteses que podem ser falseadas são de fato científicas (nesse sentido, a ciência avança não pela comprovação de sentenças básicas, mas pela rejeição das mesmas, o que exige a inferência de novas hipóteses). Contrariando a linha positivista da indução, Popper afirma que o pensamento científico é baseado em hipóteses e experimentos/deduções: “Não há, pois, indução (...), nunca argumentamos passando dos fatos para as teorias”. Todo experimento ou observação é influenciado por hipóteses existentes.

Esse conceito popperiano – o falseacionismo – é tido como ingênuo por alguns pensadores, que não aceitam a existência de experimentos com o poder de falsear teorias. O húngaro Imre Lakatos (1922-1974) propôs uma reinterpretação de Popper: o falseacionismo sofisticado. Para Lakatos, as hipóteses são científicas se puderem ser falseadas não por um único experimento, mas por um corpo de idéias que possa substituir a hipótese original. Esse ‘programa de pesquisa’, termo criado por Lakatos, engloba teorias, experimentos e a observação. Outro austríaco, Paul Feyerabend (1924-1994) defendia que o desenvolvimento das ciências dava-se por um processo dinâmico baseado no não-absolutismo e na não-uniformidade das teorias: quanto mais teorias, melhor. Ele considera a ciência um empreendimento anárquico, que não deve seguir princípios fixos ou metodologias específicas. Para Feyerabend, tudo vale na investigação científica.

Já o norte-americano Thomas Kuhn (1922-1996), no livro A estrutura das revoluções científicas, baseou-se na história das ciências físicas para estabelecer que o padrão de desenvolvimento da ciência fundamenta-se na mudança de ‘paradigmas’ por meio de ‘revoluções’. Paradigmas são conjuntos de hipóteses aceitos pela comunidade científica e que fornecem, por um tempo, problemas e soluções às questões levantadas pelos praticantes da ciência. Para Kuhn, os cientistas passam grande parte do tempo refinando os paradigmas aceitos – tais períodos de ciência dita ‘normal’ são pontuados por ‘explosões revolucionárias’, em que o consenso paradigmático é contestado e substituído por um novo conjunto de hipóteses. Dessa maneira, a imagem de realizações científicas acabadas, desvinculadas de um contexto histórico, compromete a compreensão do processo de construção da ciência.

A transitoriedade das teorias científicas não é discutida no ensino de ciências nos níveis fundamental e médio e, por vezes, sequer no superior. Há professores que tendem a tratar a ciência como um conjunto de invenções e descobertas individuais, herméticas e fixas, visão essa reforçada por parte dos livros didáticos e pela grande mídia, que se limitam a expor as idéias centrais das teorias e suas aplicações imediatas, sem considerar o processo subjacente à construção dessas hipóteses.

No ensino de ciências, a adoção de uma perspectiva dinâmica, baseada na idéia de teorias transitórias, seria benéfica. Essa visão contrapõe-se à linearidade e à falta de contextualização histórica encontradas nas escolas de nível médio e fundamental, e pode ser uma ferramenta útil para a formação de alunos críticos e com capacidade de reflexão.

segunda-feira, 7 de julho de 2008

Carl Zimmer

Abaixo seguem os endereços do blog e do site de um grande divulgador da ciências, especialmente da biologia, Carl Zimmer.
http://blogs.discovermagazine.com/loom/
http://carlzimmer.com/
Seus interesses giram em torno da teoria da evolução e dos seus desenvolvimentos. Na edição mais recente da Scientific American Brasil (de julho), foi publicado um artigo de sua autoria, em que ele discute a respeito dos vários conceitos de espécie e da sua importânica para a compreensão do processo evolutivo. Para quem não puder comprar a revista, o artigo completo pode ser encontrado na seção Archives, no site do autor (em inglês).

Ensaio: Sobre as revoluções

Esse breve ensaio foi publicado na Gazeta de Ribeirão do dia 12 de dezembro de 2004.
Ele se chamaria originalmente "De Revolutionibus", fazendo referência à obra De revolutionibus orbium coelestium, de Nicolau Copérnico (1473-1543), publicada pela primeira vez no ano da morte do seu autor.
Foi com a perspectiva heliocêntrica de Copérnico que começou a derrocada do antropocentrismo - muitos filósofos e historiadores da ciência consideram que essa talvez tenha sido a maior contribuição científica individual de toda a história humana, abrindo caminho para uma compreensão da realidade que nos cerca sem a dependência de entidades sobrenaturais.
Para muitos, o golpe final na necessidade de postular a existência da mão divina para a origem e manutenção dos mecanismos que mantém o motor da realidade girando foi dado por Charles Darwin em 1859, com o lançamento do seu Sobre a origem das espécies. O trabalho de Darwin pode não ter sido a estocada derradeira nessa visão de mundo ingênua e deísta mas, com certeza, representou uma revolução (ainda em processo) na maneira do homem enxergar sua posição perante a natureza. Darwin não matou Deus. Ele só começou a mostrar que a hipótese da Sua existência é completamente desnecessária.


Sobre as revoluções

Charles Morphy D. Santos

Em 1992, o cientista político Francis Fukuyama declarou com alarde o fim da História. Segundo ele, não haveria mais disputas ideológicas ou grandes acontecimentos que sobressaltassem o domínio exercido pela economia de livre mercado sobre o cenário mundial. A futurologia de Fukuyama, entretanto, não sobreviveu à queda do World Trade Center, que alterou o centro das discussões geopolíticas e empurrou o planeta rumo à incerteza histórica.

A História é pontuada por instabilidades e revoluções que mudam os rumos das sociedades, gerando novos problemas e expectativas. Esses períodos revolucionários são precedidos por relativa estabilidade, mesmo que mantida à força de armas, durante a qual pode-se ouvir o borbulhar da insurreição, mas nada garante que as mudanças tenham data para acontecer. Os exemplos são inúmeros. A revolução Bolchevique de 1917 desmantelou o czarismo que controlava a Rússia há gerações. O mesmo ocorreu em Cuba, em 1959. Enquanto Che Guevara e Fidel Castro pegavam em armas e inflamavam o povo, o general Fulgêncio Batista assinava acordos em interesse próprio, prática corriqueira por décadas na ilha.


Essa estase seguida de mudanças súbitas é comum também no desenvolvimento das ciências. Antes de surgir uma teoria revolucionária, a comunidade científica vive períodos caracterizados pela prática da ciência normal, que utiliza o conhecimento vigente, ou paradigma, para a execução de tarefas e resolução de problemas sem contestar seus fundamentos. O pensamento científico desenvolve-se a partir do questionamento e substituição desses paradigmas por meio de revoluções capitaneadas por outro conjunto de hipóteses que transcenda as soluções apresentadas pelo paradigma anterior. A teoria da evolução de Charles Darwin e Alfred Wallace é um exemplo de revolução científica, pois provocou a mudança de uma visão criacionista do mundo natural para um paradigma evolucionista materialista, que descarta eventos sobrenaturais para explicar a origem e diversificação dos seres vivos.

A transitoriedade das teorias é característica do pensamento científico. Nada em ciência é definitivo ou absoluto, pois apenas hipóteses que podem ser desafiadas à luz de novos conhecimentos são científicas. Não se espera encontrar a verdade em um laboratório (as revelações são típicas das religiões, essencialmente dogmáticas).

Enraizada no contexto social e histórico, a ciência é uma prática humana como outras. Sob a aparência equilibrada e estável da superfície fomentam-se golpes que podem mudar o rumo de uma área de pesquisa ou, caso eles se mostrem precipitados ou ingênuos, tornar mais forte o paradigma corrente.
A revolução é a constante global da História.

Apesar de profetas apocalípticos aparecerem pregando o fim das mudanças e a apatia sem fim, as sociedades humanas (e as ciências nela inseridas) caminham entre a estase e o ponto de mutação. As grandes mudanças derrubam alicerces e deslocam o centro das discussões, sejam elas a respeito da política de uma nação ou sobre a posição do homem entre as demais espécies. Mesmo que se apregoe a total manutenção das convicções prévias e do conhecimento estabelecido, os insurgentes podem estar escondidos, tramando a próxima manobra.