domingo, 24 de agosto de 2008

Ensaio: Três tigres

Esse é o último ensaio da série que foi publicada no jornal Gazeta de Ribeirão. Saiu no dia 11 de agosto de 2005, na edição número 92.

Três tigres

Charles Morphy D. Santos

No início de Ran, obra-prima de Akira Kurosawa inspirada no Rei Lear de Shakespeare, o lorde samurai Hidetora, cansado de guerras e conquistas, em reunião com seus principais comandados, decide delegar a liderança ao seu primogênito, Taro. Sob o olhar atônito dos assessores e do bobo da corte, Hidetora faz a partilha do império, incumbindo Jiro e Saburo, seus dois outros filhos, da tarefa de escudar o irmão mais velho. Para demonstrar a necessidade da colaboração, o velho lorde dá a cada um deles uma flecha de madeira e pede que tentem quebrá-la, o que fazem de pronto. Hidetora, então, agrupa três flechas em um único feixe e repete o pedido. O conjunto resiste às investidas dos irmãos, corroborando a tese do pai, até que o mais jovem, Saburo, consegue quebrar as flechas apoiando-as no joelho. O comportamento cooperativo funciona mas não é inquebrantável: a competição sempre surge, de uma ou outra forma.

A evolução das espécies também é marcada por esses dois extremos. No ambiente natural, os organismos estão permanentemente à procura de alimento, água, território e parceiros reprodutivos (tomando os animais de forma geral. A competição nos mundos bacteriano, vegetal e entre os fungos também é notável). Apesar do senso comum ver a natureza engalfinhada em batalhas pela sobrevivência, nas quais apenas os fortes obtêm sucesso, a competição ocorre em diferentes níveis e é, por vezes, sutil e não "declarada". Desde Darwin e Wallace, no século XIX, aceita-se que as populações naturais têm altas taxas de variação interna e que, em resposta a pressões ambientais, alguns grupos podem ser selecionados em razão de portarem características vantajosas para a manutenção de sua prole. É uma falácia biológica afirmar que são os fortes os melhores competidores, uma vez que força não garante sobrevivência. Além disso, a cooperação também é fundamental na evolução.

O comportamento cooperativo aparece, por exemplo, em vertebrados, artrópodes (as sociedades de formigas, abelhas e cupins), cnidários (a caravela portuguesa - ou caravela do mar, do gênero Physalia - é uma medusa colonial formada por indivíduos diferentes) e mesmo em organismos unicelulares como as algas verdes Volvox (formam colônias esféricas com cerca de 500 a 50 mil células biflageladas unidas por filamentos citoplasmáticos e bainhas gelatinosas). A cooperação, deixando de lado a idéia finalista de que associações biológicas têm um objetivo, remonta à simbiose de microorganismos com bactérias fotossintetizantes e produtoras de energia a partir da queima do oxigênio, há bilhões de anos.

O jovem Saburo, entretanto, não estava errado ao questionar o comportamento cooperativo, uma vez que ele também se insere em um contexto de competição. Algumas espécies têm condicionada a sua sobrevivência à vida cooperativa, o que não as exclui de relações competitivas no ambiente natural. Associações são selecionadas se conferirem um diferencial aos indivíduos que resulte em maiores taxas de reprodução e, conseqüentemente, maiores chances de permanência daquelas características herdáveis no correr da evolução do grupo. Esses conceitos biológicos permitem-nos extrapolar uma conclusão válida para tempos de delações premiadas e implosões partidárias: três flechas unidas podem suportar forças opositoras mas nada garante que o conjunto resistirá incólume ao ambiente competitivo no qual está entranhado.

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Ensaio: No meio da tempestade

Esse ensaio foi publicado na Gazeta de Ribeirão, nº 36, do dia 20 de fevereiro de 2005. Diferentemente dos outros textos publicados nesse jornal, esse não trata especificamente de ciências mas traz um panorama geral sobre o ensino superior no Brasil. Obviamente, as opiniões expressas não esgotam o assunto.

Ensaio: No meio da tempestade

Charles Morphy D. Santos

A universidade brasileira vive em clima de permanente colapso. Parte dos problemas relaciona-se à sua origem elitista, criada como um bem cultural oferecido à minoria dominante, e também à crescente privatização do setor incentivada por políticas neoliberais dos governos federal e estaduais. Apesar da maioria esmagadora da pesquisa nacional se encontrar dentro das universidades públicas, elas têm seus orçamentos reduzidos a cada ano. A falta de estabilidade orçamentária aliada à pouca transparência sobre as verbas para o setor contribuem para lançar a academia no meio da tormenta.

Em geral, há um descompasso entre a pesquisa produzida nas universidades e as exigências tecnológicas do país. Não se defende aqui um modelo de ensino competitivo voltado diretamente para o mercado (como a universidade-empresa norte-americana), mas um modelo que se comprometa tanto com o desenvolvimento da pesquisa básica quanto com a produção de um saber que revele e transforme a realidade nacional. Hoje, a universidade encontra-se fortemente pressionada pelo mercado - na procura de pessoal qualificado para seu alto escalão - e pelas classes baixas - em busca de mobilidade social. Em todo o mundo, além da feroz competição mercantil, a academia envolve-se também nas lutas contra a discriminação, assumindo o papel pretensamente desempenhado pela Igreja há tempos: preservar tradições, produzir riqueza e conhecimento, e garantir o bem-estar. O choque entre a multiplicidade de funções a ele apregoadas e as suas concepções ideológicas originais está no cerne da crise atual do modelo de ensino superior.

Os currículos universitários encontram-se defasados, fragmentados e pouco maleáveis, o que dificulta o entrosamento interdisciplinar e a adequação dos programas aos interesses fundamentais da sociedade. Principalmente nas instituições públicas, os entraves às reformas curriculares impedem a modernização dos cursos. Assim, os gastos aumentam, o que não se reflete em aumento de qualidade. Com a carga horária inflacionada, o tempo para estudo e atualização reduz-se drasticamente, e a formação acadêmica distancia-se da amplitude e universalidade prometidas pelo ensino superior.

O quadro de crise é ainda pior se considerarmos a desvalorização da atividade docente (baixos salários nas instituições públicas e ausência de plano de carreira nas particulares) e a não participação da comunidade acadêmica nos processos de tomada de decisão. Também a estrutura de poder conservadora e centralizadora, fundida à incompetência de muitos dos responsáveis pelo seu funcionamento – envolvidos em projetos de forte apelo midiático como a abertura de novas unidades enquanto as existentes definham –, influenciam para o aumento do descrédito quanto ao presente e futuro da universidade brasileira.

Recobrar o status das instituições de ensino superior depende da recuperação da confiança nas instituições sociais e políticas do país, que não satisfazem os interesses emergentes. É imprescindível examinar de forma concreta a função da universidade na produção e disseminação de conhecimento e competência profissional, em vistas de se estabelecer políticas de ensino, pesquisa e extensão voltadas para a realidade regional e nacional. Cabe ao Estado assumir o seu papel na reformulação do projeto universitário, sem desconsiderar os interesses e as diferentes concepções presentes na própria academia.

Todos os segmentos da sociedade devem participar do soerguimento da universidade brasileira. Só a partir da mudança de identidade e conseqüente negação do seu caráter intrinsecamente elitista é que o ensino superior no Brasil poderá encontrar um modelo coerente e democrático de desenvolvimento.

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Referências sobre evolução, sistemática e biogeografia

Reprisando algumas das referências para quem se interessa por evolução, sistemática e biogeografia:

1. Amorim, D.S. 2002. Fundamentos de Sistemática Filogenética. Editora Holos, Ribeirão Preto.

2. Blanc, M. 1994. Os herdeiros de Darwin. Editora Scripta.
3. Bowler, P. 2003. Evolution: the history of an idea. Los Angeles, University of California Press.
4. Calor, A.R. & Santos, C.M.D. 2004. Filosofia e ensino de ciências: uma convergência necessária. Ciência Hoje, 210 (35), 59-61.
5. Chalmers, A.F. 1993. O que é ciência, afinal? Editora Brasiliense, São Paulo.
6. Darwin, C. 1859 (2004). A origem das espécies. Editora Martin Claret, São Paulo.
7. Dawkins, R. 1998. Universal Darwinism, pp. 15–37, in: Hull, D.L & Ruse, M. (eds.) The philosophy of biology. Oxford University Press, New York.
8. Dawkins, R. 1998. A escalada do monte improvável: uma defesa da teoria da evolução. Companhia das Letras, São Paulo.
9. Dawkins, R. 2000. Desvendando o arco-íris. Companhia das Letras, São Paulo.
10. Dawkins, R. 2001. O relojoeiro cego. Companhia das Letras, São Paulo.
11. Dawkins, R. 2005. O capelão do diabo. Companhia das Letras, São Paulo.
12. Eldredge, N. 1989. Macroevolutionary dynamics: species, niches, and adaptative peaks. McGraw-Hill Publishing Company, New York.
13. Eldredge, N. 1995. Reinventing Darwin: the great debate at the high table of evolutionary theory. John Wiley & Sons, New York.
14. Ferreira, R. 1990. Bates, Darwin, Wallace e a teoria da evolução. Edusp, São Paulo.
15. Gould, S.J. 1980 (1989). O polegar do panda. Editora Martins Fontes, São Paulo.
16. Gould, S.J. 1989 (1990) Vida maravilhosa. Companhia das Letras, São Paulo.
17. Gould, S.J. 1998. On replacing the idea of progress with an operational notion of directionality. In: Hull, D.L & Ruse, M. (eds.), The philosophy of biology. Oxford University Press, New York, pp. 650–668.
18. Gould, S.J. 2001. Lance de dados: a idéia da evolução de Platão a Darwin. Editora Record, São Paulo.
19. Gould, S.J. 2002. The structure of evolutionary theory. The Belknap Press of Harvard University Press, Cambridge.
20. Gould, S.J. 2003. I have landed – the end of a begging in Natural History. Three Rivers Press, New York.
21. Hennig, W. 1966 [1979]. Phylogenetic Systematics. University of Illinois Press, Urbana.
22. Hull, D.L. 1988. Science as a process: an evolutionary account of the social and conceptual development of science. University of Chicago Press, Chicago.
23. Kitching, I.J., Forey, P.L., Humphries, C.J. & Williams, D.M. 1998. Cladistics: the theory and practice of parsimony analyses. Oxford University Press, New York.
24. Kuhn, T.S. 1962 (2003) A estrutura das revoluções científicas. Editora Perspectiva, São Paulo.
25. Lakatos, I. 1977. The methodology of scientific research programmes: philosophical papers, Volume 1. Cambridge University Press, Cambridge.
26. Larson, E.J. 2006. Evolution: the remarkable history of a scientific theory. The Modern Library, New York.
27. Lovejoy, A.O. Buffon and the problem of species. 1959a. In: Glass, B., Temkin, O. & Strauss Jr., W. (eds.) Forerunners of Darwin 1745–1859, Baltimore, Johns Hopkins University Press, p. 84–113.
28. Lovejoy, A.O. 1959b. The argument for organic evolution before the Origin of species 1830–1858. In: Glass, B., Temkin, O. & Strauss Jr., W. (eds.) Forerunners of Darwin 1745–1859, Baltimore, Johns Hopkins University Press, p. 356–414.
29. Mayr, E. 1982 (1998). O desenvolvimento do pensamento biológico. Editora da Universidade de Brasília, Brasília.
30. Mayr, E. 1991 (2006). Uma ampla discussão: Charles Darwin e a gênese do moderno pensamento evolucionário. Funpec editora, Ribeirão Preto.
31. Mayr, E. 2000. Darwin’s influence on modern thought. Scientific American, 283:66–71.
32. Mayr, E. 2006. Biologia, ciência única. Companhia das Letras, São Paulo.
33. Meyer, D. & El-Hani, C. 2005. Evolução: o sentido da biologia. Editora Unesp, São Paulo.
34. Nelson, G. & Platnick, N. I. 1981. Systematics and biogeography: Cladistics and vicariance. Columbia University Press, New York.
35. de Pinna, M.C. 2001. Conrad Gesner e a sistemática biológica. Ciência Hoje 178 (30) 82-84.
36. Popper, K. 1959. The Logic of Scientific Discovery. Hutchinson, London.
37. Popper, K. 1962. Conjectures and refutations: the growth of scientific knowledge. Routledge, Kegan & Paul, London.
38. Popper, K. 1976 (1977). Autobiografia intelectual. Editora Cultrix, Universidade de São Paulo.
39. Schuh, R.T. 2000. Biological Systematics. Cornell University Press, Ithaca.
40. Somit, A. & Peterson S.A. (eds.) 1989. The dynamics of evolution: the punctuated equilibrium debate in the natural and social sciences. Cornell University Press, Ithaca and London.
41. Schuh, R.T. 2000. Biological Systematics. Cornell University Press, Ithaca .
42. Tort, P. 2004. Darwin e a ciência da evolução. Editora Objetiva, Rio de Janeiro.
43. Wallace, A.R. 1858. On the tendency of varieties to depart indefinitely from the original type. Proceedings of the Linnean Society of London, 3, 53–62.

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Porque Popper não vale para a cladística

Trecho de "Jantando dinossauros com Hennig", artigo que submeti recentemente à Scientia Studia:

"Qualquer análise filogenética se inicia com a transformação da observação da diversidade em códigos que servem como base de dados sobre os quais será aplicado um algoritmo. Essa etapa carrega subjetividade, pois não há observações livres de teorias. Nas palavras do Nobel de Medicina e Fisiologia de 1960, sir Peter Medawar (1979, p. 83), 'A observação é um processo crítico e proposital; há uma razão científica para se fazer uma observação e não outra. O que o cientista observa é sempre uma diminuta parcela no vasto campo dos possíveis objetos de observação'. A observação é escolhida segundo critérios que nem sempre podem ser qualificados como objetivos.

A análise filogenética fundamenta-se no teste de congruência entre os caracteres inicialmente considerados homólogos. O objetivo da congruência é descobrir as relações evolutivas entre os organismos. Dessa forma, os padrões que resultam em relações de parentesco na cladística são resultado da homologia – um cladograma de táxons representa uma hierarquia de homologias (Ebach et al., 2005). Para a sistemática filogenética, a não-congruência de padrões de distribuição de caracteres e seus estados de caráter em um cladograma leva à chamada homoplasia, que é a negação de uma hipótese primária de homologia filogenética em favor de uma hipótese de surgimento independente de uma característica em um dado cladograma".

Trecho de "Using the logical basis of phylogenetics as the framework for teaching biology", um artigo que escrevi com o Dr. Adolfo Calor (FFCLRP-USP) e aceito para publicação na Papéis Avulsos de Zoologia:

"Despite some disagreement on the subject, different cladograms derived from different data sources are unfalsifiable according to the Popperian argument (Popper, 1959, 1962). However, when a cladogram is coherent (non-contradictory) with other cladograms – it does not matter the kind of evidences – it means that the hypothesis has a high degree of corroboration. Consequently, as they are scientific hypotheses, cladograms can be tested against data provided by multiple sources. Those cladograms shown to be unsupported (contradictory) are often abandoned, while those that remain well substantiated continue to be used. This context, Popperian philosophy provides the justification for phylogenetic analysis. (Wiley, 1975; Nelson & Platnick, 1981; Farris, 1983; Kluge, 1997; Faith & Trueman, 2001)".



Recentemente, foi publicado um artigo na Cladistics com uma perspectiva bastante interessante a respeito da aplicação do pensamento popperiano na sistemática biológica: "The unfalsifiability of cladograms and its consequences", por Lars Vogt (Cladistics, 24(1), February 2008, 62-73). Nele, Vogt fala sobre a impossibilidade de se falsear uma hipótese filogenética. Ele faz um apanhado geral do falseacionismo popperiano e chega à conclusão de que a filosofia de Popper não cabe no raciocínio filogenético, em nenhuma etapa (nem durante o teste de congruência dos caracteres, como amplamente aceito, a partir da idéia de que hipóteses de homologia primária podem ser falseadas, i.e., "corroboradas" ou "refutadas").

O embasamento "popperiano" da filogenética é especialmente derivado do trabalho de James S. Farris (1983), que utilizou uma concepção bastante idiossincrática do que seria a filosofia de Popper e a incorporou ao raciocínio cladístico. O trecho grifado acima reflete uma concepção disseminada na sistemática filogenética moderna. Mas existem alguns problemas...

Para Popper, uma teoria tem que ser falseável, sim, mas ela NUNCA é falseada de fato (uma vez que o próprio falseador também é uma teoria, mesmo sendo ele uma observação). Quando uma hipótese de homologia primária não é congruente com as demais, ela não é REFUTADA, em um sentido popperiano, visto que a distribuição de caracteres homoplásticos é perfeitamente adequada à qualquer topologia. Sendo assim, qualquer hipótese filogenética pode abarcar tanto sinapomorfias quanto homoplasias - nenhuma hipótese de homologia primária é "falseada" ou "corroborada".

Segundo Popper, uma teoria científica é passível de falseamento se ela proíbe a ocorrência um determinado (ou determinados) evento ou observação (por exemplo, a teoria da relatividade "proíbe" que a luz continue em linha reta quando passa próxima de uma grande massa, como uma estrela). Dessa forma, hipóteses científicas em um sentido popperiano são aquelas que se baseiam na possibilidade de falseamento de previsões oriundas da teoria. Hipóteses de homologia primária (ou hipóteses filogenéticas como um todo) NÃO PROÍBEM NADA e NÃO FAZEM PREVISÕES SOBRE NADA. Sendo assim, elas não se enquadram no critério popperiano, que não foi criado originalmente no âmbito de hipóteses históricas como os cladogramas.

O trabalho de Vogt (2008) tem uma conclusão muito pertinente. Ele diz que qualquer hipótese científica - cladogramas inclusos - passam por algum tipo de teste de hipótese, que não precisa seguir os preceitos popperianos, e que a sistemática é uma ciência madura o suficiente para ter sua própria filosofia subjacente.

Esse é um artigo que vale a pena ser lido e, se possível, "deglutido e incorporado às células do sistemata". Eu já estou revendo meus conceitos...

sábado, 2 de agosto de 2008

Parábola cética

Entre 1988 e 1989, foi publicada uma edição especial do Surfista Prateado, escrita por Stan "The Man" Lee e ilustrada por Jean Giraud Moebius, intitulada Parábola. Nela, Galactus, uma entidade cósmica conhecida como "o Devorador de Mundos", vem à Terra para destruí-la e se alimentar da sua energia. Para isso, Galactus permite que as pessoas façam o que bem desejarem em seu nome para, assim, encontrarem a "salvação" - o plano é permitir que a humanidade se aniquile por meios próprios. Nesse ínterim, surge seu ex-arauto, o Surfista Prateado, questionando o direito de Galactus de atacar a Terra com um estratagema tão ardiloso.

Essa é uma das mais belas HQs de super-heróis já criadas. Definitivamente, não é leitura apenas para crianças...




Como bem aponta João Carlos, do blog Chi vó, non pó, em um comentário aqui nesse espaço, o ceticismo não é uma perspectiva exclusiva das ciências. Até mesmo as religiões poderiam se beneficiar dele (através, por exemplo, de uma auto-análise periódica - quiçá constante - que levasse à depuração de suas premissas reiteradas vezes consideradas infundadas). No entanto, essa me parece uma visão de mundo por demais otimista. As religiões, quando tomadas no geral, não parecem fazer um esforço sincero para depurar o que podemos chamar de suas "superstições infundadas".

Religiões deveriam tratar de alguns dos aspectos éticos e morais do homem e da sua condição na existência. Desde tempos remotos pré-científicos, antes mesmo da história escrita, elas são importantes para aqueles que buscam na fé algum conforto para suas vidas, ou que vêem na devoção ao divino, independente de como ele se expressa, a sua tábua de salvação. O misticismo também funcionava como fator organizador dos agrupamentos sociais primitivos, aparecendo por vezes associado às primeiras tentativas do homem de interpretar os fenômenos naturais.

Como é de amplo conhecimento, as doutrinas religiosas baseiam-se em dogmas, fundamentos doutrinários muitas vezes frutos de pretensas revelações ditadas pelos próprios deuses, santos ou espíritos iluminados. Visto que seriam as palavras divinas em si, apesar de transcritas e interpretadas por homens, e uma vez tidos como certos pela alta hierarquia da igreja, congregação, seita e similares, esses preceitos transformam-se em ditos sagrados e, infelizmente, não se prestam a indagações sobre seus fundamentos. Assim, passam a corresponder à verdade absoluta proferida pelo altíssimo. Nesse sentido, o desenvolvimento de uma postura cética torna-se pouco provável no âmbito das religiões, pois o questionamento dos dogmas pode levar à dúvida quanto à validade desse ou daquele preceito, conseqüentemente erodindo os pilares sustentadores do pensamento religioso.

A questão é ainda mais ampla e extrapola essa frágil dicotomia ciência-religião. Qual seria o objetivo de se estimular a reflexão individual (ou coletiva), o "pensar com a própria cabeça", se tudo parece já estar escrito, refletido e "pensado"? É muito mais cômodo transferir o ato de raciocinar para o padre, o pastor, o papa... ou o jornalista, o professor, o cientista... já ouvi muitos alunos dizerem "Professor, o que eu tenho que saber?" ou "Professor, o que o senhor quer que eu estude?" ou ainda "Professor, como eu devo pensar a respeito desse assunto?".

Parece que sempre buscamos um führer, um condutor para nos mostrar o que deve e o que não deve ser feito. Nas palavras do Surfista Prateado: "Eles desejam um líder, assim como uma criança espera o leite materno. É por isso que se tornam presas fáceis dos tiranos e déspotas".