sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Ciência responsável é conservadora?

Discussões a respeito de avanços tecnológicos sempre tendem a polarização: alguns defendendo as descobertas e novidades científicas e outros contrários a elas. Essa dicotomia é desnecessária e inocente. É uma interpretação por demais limitada da história da ciência.

Há um belo livro póstumo do
astrônomo e divulgador da ciência Carl Sagan (uma referência constante aqui nesse blog) intitulado The Varieties of Scientific Experience, de 2006, que reúne uma série de palestras sobre o pensamento científico e os motivos que fazem dele a melhor ferramenta disponível para explicar a realidade. No entanto, como o próprio Sagan considera em muitos trechos (e isso se repete em outros de seus livros, por exemplo, no Bilhões e Bilhões), aos cientistas cabe também vislumbrar as conseqüências do que fazem e à população restante cobrar por explicações. Isso não é conservadorismo ou romantismo exacerbado - é apenas uma postura responsável:

"Eu acho que a primeira coisa, em uma democracia, onde há ao menos uma pretensão sobre as pessoas controlarem as políticas governamentais, é que todo processo democrático deve ser usado. Você pode se certificar de que aqueles em quem vota têm visões racionais sobre esses assuntos. Você pode trabalhar duro para ter certeza que há uma real diferença de opiniões entre os diferentes candidatos. Você pode escrever cartas para jornais. Mas mais importante que tudo isso, eu acredito, é que cada um de nós deve se equipar com um "kit detector de bobagens. Os governos gostam de nos dizer que tudo está bem, eles têm tudo sob controle, e para deixá-los em paz. E muitos de nós, especialmente em assuntos que envolvem tecnologia (...) tem a idéia de que isso é muito complicado. Nós não podemos entender. Os governos têm os experts. Certamente eles sabem o que estão fazendo. Eles devem ser favoráveis à manutenção do nosso país, independente de que país seja. E, de qualquer forma, esses são assuntos tão penosos que eu não quero pensar neles, o que os psiquiatras chamam de negação. E isso me parece uma receita para o suicídio. Nós devemos, todos nós, entender esses assuntos porque nossas vidas dependem deles, e as vidas dos nossos filhos e dos nossos netos. Não são assuntos em que você deve assumir pela fé. Se há uma circunstância em que o processo democrático deve ser levado em conta, é essa. Algo que determina nosso futuro e o de tudo que queremos bem. E, além do mais, eu diria que a primeira coisa a fazer é perceber que os governos, todos governos, pelo menos em uma ocasião, mentem. Alguns deles o fazem o tempo todo (...) no geral, os governos distorcem os fatos para permanecer no cargo. Se formos ignorantes sobre o que são esses assuntos e não pudermos nem mesmo fazer as questões críticas, então não faremos muita diferença. Se pudermos entender esses assuntos, se pudermos apontar as questões certas, se pudermos mostrar as contradições, então poderemos fazer algum progresso. Há muitas outras coisas que podem ser feitas, mas para mim parece que essas duas, o kit de detecção de bobagens e o uso do poder democrático, são pelo menos as primeiras a se considerar".
Carl Sagan, The Varieties of Scientific Experience (2006, pp. 257-258).

Um dos grandes problemas da tecno
logia subjacente aos transgênicos é sua "propaganda enganosa": o discurso que coloca os OGM (organismos geneticamente modificados) como a arma definitiva contra a fome e a desnutrição é simplesmente hipócrita. Substitua acima a palavras 'governos' por 'multinacionais do setor alimentício' para ter uma idéia a esse respeito.

A produção de alimentos hoje no planeta é suficiente para alimentar toda a população mundial (há um pequeno livro da coleção Folha - Alimentos Transgênicos, do jornalista Marcelo Leite - que discute um pouco o problema; outro livro interessante é um recém-saído do forno, do prof. Fernando Zucoloto, da USP-RP, intitulado Por que comemos o que comemos?). Se a idéia é mesmo a de acabar com a fome no mundo ou pelo menos diminuí-la, por que não começar reduzindo as margens de lucro dos conglomerados internacionais de produtos alimentícios? Isso levaria à redução dos preços e à possibilidade da população de menor renda ter acesso a alimentos de maior qualidade. Qual a garantia de que os alimentos transgênicos seriam mais baratos? Não é ingenuidade pensar que as corporações multinacionais que defendem a tecnologia são altruístas em uma cruzada pelo bem-estar mundial?

Pode-se falar que comprar arroz modificado, "melhorado", por exemplo, com a inserção de betacaroteno, seria mais barato que comprar arroz e cenouras. Talvez isso seja realmente verdade, mas há uma grande diferença entre ingerir arroz + cenouras e ingerir arroz com betacaroteno... aí está a "propaganda enganosa": compre 1, leve 2 (quando, na verdade, o correto seria algo como compre 1, leve 0,8 e corra riscos desnecessários).

No caso dos transgênicos, a argumentação não convence - na verdade, ela é dúbia e lacunosa. É claro que os organismos geneticamente modificados (o correto seria organismos artificialmente modificados via manipulação genética - a evolução é um longo processo de modificação genética dos organismos...) são importantíssimos na nossa sociedade atual - basta lembrar, por exemplo, da produção de insulina por bactérias modificadas em laboratório. Há, no entanto, uma grande distância entre o que se apregoa e o real significado das coisas no caso dos alimentos transgênicos. A defesa dos transgênicos carece de bons argumentos assim como a defesa estrita das religiões - não há evidências, ficamos sempre no "pode ser interessante", "pode ser bom", "vai ajudar" enquanto os problemas de fato não são encarados...

A razão não só pode nos dar um controle suficiente da Natureza, como ela é a ÚNICA coisa capaz disso. No caso dos transgênicos, o que tem faltado é exatamente o uso dessa razão, ainda mais quando o assunto é apresentado para o grande público, no geral leigo. Tudo fica parecendo uma luta entre os cientistas que querem acabar com a fome versus os ambientalistas "conservadores românticos".

Ficam várias perguntas: se não há riscos, se a tecnologia veio para ajudar, qual o problema em colocar um rótulo "T" nos produtos geneticamente modificados? Por que não tentar esclarecer a população com argumentos sólidos e não com promessas de campanha política?

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