sábado, 25 de outubro de 2008

Para quando a ciência "falha"...

Como decidir a ordem dos autores em um artigo científico?


Sobre o processo de revisão pelos pares (ou seriam impares?)...


sábado, 18 de outubro de 2008

Sobre a parcimônia nas ciências - parte II

Para o físico e filósofo austríaco Ernst Mach (1838-1916), o desenvolvimento do pensamento científico pode ser interpretado como uma linha contínua na direção de representações cada vez mais simples das observações. As maiores descobertas na ciência não seriam tanto novas observações e sim novas simplificações na interpretação de fatos conhecidos. Dentro dessa perspectiva, a teoria da relatividade do físico alemão Albert Einstein (1879-1955) seria uma interpretação simplificada da realidade observada se comparada com a gravitação newtoniana: ambas trabalham sobre a mesma base de fatos observacionais, contudo a teoria einsteniana necessita de menos premissas ad hoc, algo como muletas ou remendos teóricos, para explicar igual conjunto de fenômenos. Mach defende que a construção de uma teoria científica é um processo de procura por abstrações que possam cobrir uma ampla variedade de observações com o menor esforço mental. Sua teoria, entretanto, acaba por não permitir a multiplicação de entidades, uma vez que a ciência teria que trabalhar sobre o mesmo conjunto de fatos observados à busca de interpretações mais parcimoniosas para essas observações, não se preocupando com o levantamento de novos fatos. Apesar dos comentários de Mach fornecerem um quadro geral sobre a tendência em se aceitar a parcimônia entre os cientistas, eles não funcionam como justificativa para o seu uso.

É desnecessário mensurar, de forma absoluta, quão parcimoniosa é uma teoria em relação à outra, pois não há uma maneira direta de apontar, entre duas teorias conflitantes, qual delas tem maior parcimônia. A idéia da evolução por seleção natural dos naturalistas britânicos Charles Darwin (1809-1882) e Alfred Wallace (1823-1913), de meados do século XIX, não é mais parcimoniosa que as teorias criacionistas pelo fato de conter um número menor de hipóteses independentes e sim porque seus pontos de partida são em menor número e de um “único tipo”, sem a descontinuidade e a arbitrariedade das várias sub-hipóteses da teoria especial da criação, como os atos divinos individuais, a existência de um centro de origem há muito desaparecido (no qual todos os organismos do planeta teriam sido criados por um Deus ex machina), a pouca idade da Terra e postulados afins.

Assim como a teoria evolutiva contrariou o cânone criacionista, também as idéias biogeográficas vigentes até a metade do século XX, que tentavam explicar a distribuição dos organismos no planeta segundo eventos individuais, não-compartilhados, de dispersão de longa distância, foram questionadas por outras teorias biogeográficas mais elegantes, que tomavam por base a deriva continental e a possível existência de eventos de disjunção (separação) compartilhados por muitas populações de várias espécies diferentes. Enquanto as teorias dispersalistas trabalham a partir do estabelecimento de centros de origem e rotas de dispersão para cada um dos grupos animais e vegetais, o que significa um grande número de suposições ad hoc, a biogeografia de vicariância procura causas comuns às disjunções, minimizando as explicações caso a caso.

A distribuição de mesossaurídeos (répteis aquáticos de pequeno tamanho, extintos há cerca de 250 milhões de anos) representa bem a aplicação da parcimônia na biogeografia. Há registros de fósseis de mesossauros tanto na América do Sul, na bacia do Paraná, quanto na África, na bacia do Karoo. Antes dos trabalhos do meteorologista alemão Alfred Wegener (1880-1930) nos anos 1920-1930, que ressuscitaram a idéia dos continentes em movimento, a melhor explicação para a localização desses fósseis se dava com base na ocorrência, no passado, de eventos de dispersão de longa distância, com os animais fazendo um périplo da África, atravessando o Atlântico, até o continente sul-americano (ou o caminho inverso, se os ancestrais do grupo tivessem se originado na América do Sul), em uma jornada intuitivamente implausível. O problema se agravava ainda mais com a reconstituição dos prováveis ambientes desses animais (de água doce e não marinhos) e com a análise da sua estrutura morfológica, sugerindo limitadas capacidades dispersivas.

A proposição de que os continentes africano e sul-americano estiveram conectados no passado geológico do planeta estabeleceu uma explicação mais parcimoniosa para a distribuição dos mesossauros, visto que passou a ser suficiente imaginar que as populações desses répteis estiveram unidas antes da separação dos continentes para compreender a distribuição disjunta do seu registro fóssil. Além disso, a deriva continental também funciona como explicação para a distribuição disjunta de muitos outros grupos (répteis terrestres do gênero Cynognathus, gimnospermas Glossopteris etc.). É claro que eventos de dispersão ocorreram – e ainda ocorrem – durante a evolução. No entanto, quando a distribuição de vários grupos é explicada convincentemente por um mesmo evento (ou eventos), devemos privilegiar esse tipo de hipótese, uma vez que, como afirmou o botânico italiano León Croizat (1894-1982), a Terra e a biota evoluem em conjunto.

Assim como na análise biogeográfica, o estabelecimento das relações de parentesco através da sistemática filogenética e a interpretação das mudanças nos atributos dos grupos biológicos durante sua história dependem fundamentalmente do conceito de parcimônia. Apesar de nunca ter utilizado o termo, o entomólogo alemão Willi Hennig (1913-1976), criador do método filogenético, explicitamente se apoderou do conceito de parcimônia no seu “princípio auxiliar”, segundo o qual a origem por convergência não deve ser considerada como certa a priori – isso significa que se deve assumir, a menos que haja evidência em contrário, uma origem única para estruturas e comportamentos similares (portanto, homólogos) em organismos diferentes. Como dito anteriormente, a parcimônia estipula que o investigador deve preferir a hipótese filogenética que precise do menor número de homoplasias (ou seja, surgimento independente dos caracteres), apesar delas ocorrerem em grande número durante a evolução das espécies.

A aplicação da parcimônia para julgar quais hipóteses filogenéticas devem ser escolhidas e quais descartadas tem sido criticada baseado na idéia (correta) de que a evolução não é necessariamente parcimoniosa. Apesar de coerente em um primeiro momento, essa perspectiva mostra-se equivocada quando analisada em detalhe. Assim como na pesquisa científica em outras áreas, a parcimônia é aplicada na sistemática filogenética com o objetivo de minimizar o número de explicações ad hoc dos dados ou para maximizar o poder explanatório das hipóteses em relação aqueles dados. O sentido real do uso da parcimônia não se relaciona a nenhum modelo de evolução: parcimônia tem a ver com a interpretação da evidência filogenética. Não é preciso acreditar que o processo evolutivo é simples, que a natureza sempre escolhe o “menor número de passos”, para se aceitar a aplicação da parcimônia na tentativa de se entender as relações genealógicas entre os organismos e quais os processos e mecanismos envolvidos. Parcimônia nada mais é do que uma ferramenta metodológica, não fazendo nenhuma afirmação sobre como são as coisas na natureza. A parcimônia ontológica, quando aplicada à reconstruções evolutivas, parte de uma premissa que carece de evidências empíricas.

A “simplicidade” científica é sempre uma tentativa e não é algo passível de ser julgado de forma definitiva. O que pode ser visto como uma teoria parcimoniosa um dia, suficiente para explicar um grande número de fenômenos (por exemplo, a gravitação newtoniana ou a distribuição dos organismos exclusivamente via dispersão), pode se transformar em um mastodonte teórico em um momento seguinte, devido à adição de hipóteses ad hoc na tentativa de explicar observações e eventos não esperados (como a percepção da curvatura da luz quando próxima de objetos de grande massa ou a descoberta da deriva continental). Diferentemente de uma representação de como a realidade está organizada, a parcimônia é um critério que guia as decisões na ciência e, portanto, é um conceito fluido, dependente do estágio de conhecimento a respeito do problema sob escrutínio.

E, claro, muito útil para se planejar viagens.

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Sobre a parcimônia nas ciências - parte I

Existem infinitas maneiras de se chegar à Buenos Aires saindo da cidade de São Paulo. Para tornar a tarefa de contar todas as alternativas um pouco menos hercúlea, vamos limitar as possibilidades às viagens de avião. Há quantas formas de se chegar à capital argentina via área? O número de possibilidades continua tão alto que a restrição praticamente não facilitou muito o trabalho de contagem. Pode-se, por exemplo, tomar um avião em São Paulo com destino à Buenos Aires sem nenhuma parada – essa parece a solução mais inteligente (e, com certeza, mais rápida). No entanto, se o vôo tiver como destino Buenos Aires, mas antes passar no aeroporto de Miami, nos Estados Unidos, descer em Chicago, voltar para o Brasil até Manaus, com escala em Brasília, de lá para o Rio de Janeiro, parando em Porto Alegre antes de descer, finalmente, na capital portenha? Há um sem número de possíveis combinações de vôos partindo de São Paulo até Buenos Aires. Nesse exemplo, se o viajante desejasse tomar seu desjejum no Brasil e almoçar na calle Florida, em algum café ao lado da enorme loja argentina das sandálias Havaianas, certamente escolheria o primeiro cenário proposto, a combinação mais parcimoniosa entre as duas hipóteses apresentadas.

Parcimônia vem do latim parcos e significa frugalidade, moderação, simplicidade. Nas ciências, esse conceito é comumente associado à economia de suposições em teorias. O uso da parcimônia remonta ao filósofo grego Aristósteles (384 a.C.–322 a.C.), que supostamente teria afirmado que “Deus e a natureza nunca operam de maneira supérflua, mas sempre com o mínimo esforço”. Desde o início da ascensão do pensamento científico como a mais poderosa maneira de se compreender a natureza, ainda na Idade Média, tem havido uma demanda crescente pela simplicidade nas proposições científicas. Não é exagero dizer que a parcimônia é um componente essencial da ciência moderna.

Para a biologia comparada, e especialmente para a sistemática biológica, o conceito de parcimônia é utilizado de duas formas diferentes, uma ontológica e uma metodológica.

A forma ontológica supõe que o processo evolutivo é econômico, o que significaria dizer que o caminho aparentemente mais simples que pode ter sido tomado durante a evolução de qualquer grupo corresponde ao processo real. A descendência com modificação sempre representaria, portanto, a quantidade mínima de evolução. Assim, em reconstruções da história evolutiva dos organismos, hipóteses de surgimento independente ou convergente de características (as homoplasias, que são proposições inicias de homologia não congruentes com a maioria das outras proposições, quando analisadas em conjunto) devem ser evitadas, pois vão contra o conceito de parcimônia ontológica, em prol de proposições de origem comum para os atributos (as homologias, quando dois atributos, presentes em grupos distintos, são modificações de uma mesma característica presente no ancestral comum dos grupos considerados). Respeitada a parcimônia ontológica, as hipóteses genealógicas preferidas são aquelas que apresentam a menor quantidade de homoplasias.

A sugestão de que o processo evolutivo é parcimonioso, entretanto, carece de evidência empírica, e talvez possa se derivar da convicção de que a natureza é intrinsecamente ordenada, muito mais do que da análise do que de fato ocorre no mundo natural. Há inúmeros casos de convergências na evolução das espécies – o formato hidrodinâmico fusiforme, por exemplo, surgiu muitas vezes de forma independente (entre os vertebrados: nos répteis ictiossauros, em peixes e em mamíferos), provavelmente relacionado à pressões seletivas semelhantes sofridas pelos ancestrais desses grupos. A evolução chegou à forma hidrodinâmica várias vezes e por diferentes caminhos em cada um desses grupos, não uma única vez no ancestral comum dos peixes, ictiossauros e golfinhos. O mesmo vale para estruturas como os olhos, que têm mais de vinte surgimentos independentes durante a evolução dos animais.

Ainda dentro dessa idéia de parcimônia ontológica no processo evolutivo caem vários dos cenários adaptacionistas levantados para explicar a origem de praticamente qualquer estrutura, comportamento ou característica biológica (e até do fenótipo extendido, no termo cunhado por Richard Dawkins, que considera a cultura como extensão necessária do acervo genético humano) através da seleção natural. Seria o processo evolutivo tão simples a ponto de todo o mundo natural ter se originado a partir de um único mecanismo?

A forma metodológica de se abordar a parcimônia na sistemática é atribuída ao escolástico do século XIV William de Ockham (ou Occam, ou ainda Ockam). Apesar dele não ter formulado o princípio que leva seu nome (a “navalha de Ockham”), e de provavelmente não ter dito a frase a ele apregoada “Entia non sunt multiplicanda praeter necessitatem” (as entidades não devem se multiplicar além da necessidade), Ockham é explicitamente associado ao nominalismo e a seu apego à simplicidade na metafísica, o que levou à sua identificação com o princípio da parcimônia.

Entre várias proposições, a parcimônia metodológica estipula que se deve aceitar aquela que melhor se adequa à todas as observações relevantes para a hipótese considerada, isto é, aquela que necessitar do menor número de pressupostos ad hoc (explicações individuais ou caso-a-caso) para explicar os dados. Em suma, a hipótese X é preferível em relação à hipótese Y, se X é mais simples que Y. Nesse sentido, uma hipótese não deve ser considerada, ou uma entidade postulada, se ela não for absolutamente necessária para explicar alguma coisa. A “navalha de Ockham” advoga o minimalismo na ciência e nos diz para remover o desnecessário.

Partindo dessas duas visões a respeito da parcimônia, o filósofo da ciência Lewis White Beck (1913-1997) levantou dois pontos fundamentais quanto à sua utilização: (1) o princípio da parcimônia pode ser aplicado de uma forma definitiva e única, permitindo decidir sobre o valor conflitante entre duas teorias científicas? e (2) o princípio da parcimônia tem alguma implicação realista (objetiva ou cosmológica) para o material ao qual ele é aplicado? Para ele (em seu artigo “O princípio da parcimônia na ciência empírica”, de 1943, página 618):

A demanda pela simplicidade nas formulações científicas é, pelo menos nos tempos modernos, uma conseqüência histórica de uma teoria metafísica particular, na qual a doutrina cristã da unidade do mundo e a crença grega na sua inteligibilidade formaram o palco sobre o qual novos interesses matemáticos e empíricos produziram um renascimento da ciências. Originalmente, a demanda pela simplicidade não era anti-metafísica; ela era um princípio dentro da filosofia especulativa, e Ockham estava atacando particularmente uma teoria sobre a realidade que ele considerava uma metafísica extravagante.

Dessa forma, como corolário à essa particular percepção medieval de que a natureza era simples, explicações e conceitos sobre ela deveriam ser igualmente simples. A renúncia do físico Isaac Newton (1643-1727) às hipóteses metafísicas segue a mesma linha de raciocínio (Newton em Beck, 1943, páginas 618–619):

Não devemos admitir outras causas das coisas além daquelas que sejam ambas verdadeiras e suficientes para explicar as características [dessas coisas]. Para tal propósito, os filósofos dizem que a natureza não faz nada em vão, e tanto é mais inútil quanto menor sua serventia; porque a natureza está satisfeita com a simplicidade (...)

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Vida marvilhosa! – parte II

Primeiros passos

Os organismos conhecidos, com poucas exceções, compartilham as mesmas instruções relacionadas à síntese das proteínas – o chamado código genético. O mesmo códon está ligado à síntese de um determinado aminoácido em organismos tão díspares quanto uma medusa, uma planária e um golfinho. Esse caráter universal do código genético é uma forte evidência de que todos os seres vivos descendem de um ancestral comum.

Além da molécula armazenadora de informação, também deve ter aparecido na primeira forma de vida algum tipo de membrana limitante, talvez formada por lipídios e outros componentes orgânicos associados, funcionando como barreira seletiva entre o meio externo e o meio interno, além de permitir a passagem de água, nutrientes e resíduos metabólicos. A célula é a unidade fundamental de todos os seres vivos, com exceção dos vírus, que são acelulares e parasitas obrigatórios (até mesmo de outros vírus, como recentemente reportado). A célula é um compartimento envolvido por uma membrana e contendo, no seu interior, uma solução aquosa concentrada de substâncias químicas.

Segundo a teoria evolutiva, todos os organismos existentes têm um ancestral comum em algum momento de sua história biológica, já que novas espécies surgem a partir de um processo de descendência com modificação de espécies pré-existentes. Dessa maneira, todas as células, constituintes de qualquer espécie orgânica (animais, vegetais, algas, protistas), descendem de uma célula ancestral comum, simples, sem envoltório nuclear ou organelas citoplasmáticas membranosas. No interior dessa "célula ancestral", provavelmente alguma via metabólica simples, semelhante aos processos fermentativos existentes hoje, era empregada para a disponibilização de energia a partir do alimento – as principais rotas metabólicas (fermentação, respiração, fotossíntese e quimiossíntese) apareceram nos primórdios da evolução da vida. A partir desse ancestral, mutações aleatórias e recombinações genéticas, aliadas à seleção natural e a eventos estocásticos, que alteram as freqüências gênicas nas populações, levaram ao aparecimento de novas variedades de células, aptas a sobreviverem em ambientes diversos.

O primeiro organismo constituído por uma membrana limitante e uma molécula replicadora responsável pelo seu conteúdo informacional com certeza foi mais simples que qualquer forma de vida existente hoje. Dentre as várias hipóteses aventadas no correr dos anos, um dos mais propensos candidatos a sistema replicador ancestral é um determinado tipo de RNA capaz de se multiplicar e de catalisar reações químicas, agindo como uma enzima. O surgimento de uma grande variedade de organismos baseados nessa molécula teria originado algo como um “mundo de RNA”. Pesquisas recentes, entretanto, apontam para um cenário pré-RNA, no qual ácidos nucléicos ainda menos complexos teriam ação enzimática e capacidade de auto-replicação. Um destes sistemas genéticos talvez se assemelhasse ao TNA (do inglês Threose Nucleic Acid, ácido treonucléico), um polímero simples sintetizado em laboratório contendo um açúcar de quatro carbonos em contraposição aos cinco carbonos dos açúcares constituintes do RNA e DNA (riboses e desoxirriboses, respectivamente). Em laboratório, o TNA forma duplas-hélices estáveis com fitas de RNA e DNA complementares, o que sugere que essa molécula (ou outra quimicamente semelhante) tenha precedido os dois ácidos nucléicos existentes hoje na natureza. Alguns estudos trabalham com hipóteses alternativas de moléculas ancestrais, tais como o PNA (ácido nucléico peptídico) e o ácido nucléico derivado de glicerol, todas mais simples que o RNA.

Sob a forma de organismos microscópicos unicelulares, a vida evolui por bilhões de anos, até o surgimento dos organismos como envoltório nuclear, os eucariotos.

Eucariotos

Afora as bactérias verdadeiras, as arqueobactérias e os vírus, todas as formas de vida no planeta são eucariotos, organismos que apresentam o núcleo envolto por uma membrana chamada carioteca. Os eucariotos apareceram há pelo menos um bilhão de anos (estimativas conservadoras falam em 600 milhões de anos de história do grupo, enquanto extrapolações ousadas elevam esse número para 2 bilhões). As características estruturais das células procarióticas – membrana plasmática, citoplasma, ribossomos e material genético – mantêm-se nos eucariotos. Entretanto, esses organismos são mais complexos que as bactérias. No seu citoplasma, espalham-se diversas organelas relacionadas à funções intracelulares específicas.

Após o surgimento do envoltório nuclear e sobretudo com a evolução dos processos respiratórios e a possibilidade de um maior saldo energético à disposição das células, a vida entrou em uma fase de explosão de complexidade. No seu último bilhão de anos, o planeta presenciou a aurora de uma gigantesca diversidade orgânica, que só pouco a pouco começa a ser compreendida.

Muitas ainda são as dúvidas a respeito da origem da vida. Não há consenso sobre quando ou onde tudo começou. Os primeiros organismos surgiram na Terra ou em algum outro planeta? Como um ser vivo carregado de informação genética emergiu de matéria-prima inerte, não-viva, também é uma incógnita. Teria sido através de processos auto-ordenadores, intrínsecos da matéria? A “sopa primordial” continua quente, mas suas bases têm sido constantemente reavaliadas a partir de novas descobertas – hipóteses diferentes surgem quase todos os meses. A única certeza sobre a forma de vida inicial é a sua complexidade mínima (é a “parede à esquerda” da qual falava o falecido paleontólogo Stephen Jay Gould).

Não sabemos se estamos sozinhos no Universo ou se o cosmo pulsa vivo. A vida pode ser uma propriedade inerente à matéria, mas tudo talvez não passe de uma confluência de eventos única e sem paralelos em nenhum planeta. Se voltássemos a fita da história da Terra, qualquer pequena alteração na gigantesca cadeia de eventos que levou até o momento em que você lê essas linhas poderia resultar em um mundo indescritivelmente distinto daquele do lado de fora (e de dentro!) da sua janela. Entender como surgiu a vida e como ela evoluiu nos últimos 4 bilhões de anos é prestar um tributo à contingência e à idéia de que alguns dos aspectos aparentemente mais banais da natureza são paradoxalmente os mais improváveis e os mais maravilhosos.


Post-scriptum: Há uma vasta bibliografia sobre esses temas, com diferentes abordagens. Alguns livros têm tradução para o português: “O que é a vida?” de Erwin Schrödinger (o livro, de 1944, está compreensivelmente defasado, mas ainda é instigante); “O que é a vida? 50 anos depois” (vários autores, entre eles o supracitado S.J.Gould, Stuart Kauffman e Roger Penrose); e “O quinto milagre”, do físico Paul Davies. Sobre a contingência na evolução, os primeiros e os últimos capítulos do “Vida maravilhosa” (originalmente publicado em 1989), de S.J. Gould, são muito interessantes – há um extraordinário filme de Frank Capra, de 1946, chamado “It's a wonderful life” (no Brasil intitulado, sabe-se lá o porquê, "A felicidade não se compra”) que também trata do assunto. Sobre reconstruções de como seriam possíveis organismos extraterrenos, “Cosmos” (tanto a série quanto o livro), de Carl Sagan, é uma boa introdução.