quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Blog de divulgação científica na UFABC

Caros colegas,

Meus alunos do PDPD (Pesquisando Desde o Primeiro Dia) acabaram de criar um blog, sob minha supervisão, que tem como objetivo servir como plataforma de divulgação e discussão dos resultados obtidos nos seus dois projetos.
Na página, serão postados ensaios e material produzido por Anna Carolina Russo e Leandro Pereira Tosta, alunos do Bacharelado em Ciência & Tecnologia da UFABC. Ambos estão se debruçando sobre certos aspectos da evolução dos Metazoa (animais), com especial ênfase em filogenias baseadas em dados morfológicos, embriológicos e moleculares.
Se tiverem um tempo, por favor visitem (e comentem, caso achem pertinente):
http://www.evolucaodemetazoa.blogspot.com/

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Sobre conceitos de espécie



"Um
a das ironias da história da biologia é que Darwin
não explicou realmente a origem de novas espécies
no Origem das espécies porque ele não sabia como
definir uma espécie"
Douglas Futuyma (1983)

As ciências naturais estão repletas de conceitos controversos à espera de uma definição. Só para citar alguns, na biologia, não se sabe exatamente o que é ou como identificar uma área de endemismo ou um caráter homólogo. Apesar desses termos terem sido introduzidos nas ciências há mais de quase dois séculos - o primeiro a falar de área de endemismo foi Auguste de Candolle (1778-1841), em 1820, e o primeiro a definir homologia foi Sir Richard Owen (1804-1892), em 1823 - são continuamente revisados nas publicações especializadas. Um outro conceito, ainda mais fundamental, tem sido motivo de rusgas e comentários há bem mais tempo: discussões acerca do conceito de espécie remontam à filosofia grega clássica e podem ser encontradas em praticamente todos os autores que tiveram alguma importância na história do pensamento biológico. No geral, esses autores não concordam entre si ou têm uma perspectiva paradoxal a respeito do problema, com os conceitos cambiando conforme as necessidades práticas dos estudos de cada um. Até mesmo um dos pais do evolucionismo moderno, Charles Darwin (1809-1882), mostrou-se ambíguo ao tratar de espécies.

Apesar das dificuldades, a biologia moderna é quase unânime em reconhecer a existência de descontinuidades reais natureza. Isso quer dizer que podem ser identificadas entidades naturais, as quais damos o nome de espécies. Fica claro, portanto, que qualquer área das ciências biólogicas baseia-se em, ou pelo menos utiliza, espécies. Zoólogos, obviamente, lidam dia-a-dia com espécies, assim como botânicos. Geneticistas, apesar de estarem distantes da imagem popular do pesquisador naturalista, também fazem uso de espécies: há quem trabalhe com genética de populações de Drosophila melanogaster (uma espécie de dípteros antes conhecidos como moscas-das-frutas), há quem faça clonagem de Ovis aries (ovelhas, como a famosa Dolly, o primeiro mamífero clonado a partir de células adultas)... Assim, o conceito de espécie é um dos fundamentos de todas as disciplinas biológicas.

Para o ornitólogo alemão Ernst Mayr (1904-2005), em seu livro Toward a new philosophy of biology: observations of an evolutionist (Em direção a uma nova filosofia da biologia: observações de um evolucionista), publicado em 1988, “a diversidade da vida orgânica, consistindo de espécies e grupos de espécies (...), é produto da evolução. Isso torna necessário o estudo da origem e história evolutiva da cada espécie e cada táxon superior. O estudo das espécies é, portanto, uma das preocupações fundamentais da biologia”.

Entendi, você pode dizer. Lidar com espécies é condição sine qua non para o estudo da biologia. Isso está claro. Mas, o que é uma espécie? A dificuldade para responder à essa simples pergunta levou ao desenvolvimento de uma série de conceitos diferentes que tentaram definir o que essa entidade natural. O objetivo aqui não é descrever cada um deles mas apenas separá-los em classes reconhecidas na literatura biológica.

Segundo o conceito tipológico, uma espécie é uma entidade que difere de outra espécie por apresentar características diagnósticas identificáveis constantes. Dessa forma, espécies corresponderiam a agregados aleatórios de indivíduos que têm em comum algumas propriedades essenciais. O conceito remonta ao eidos platônico - o primeiro significado de eidos, presente na obra do poeta grego Homero (autor da Ilíada e da Odisséia), é "aquilo que se vê", "aparência", "forma" ou ainda "propriedade característica". Para a filosofia aristotélica, corresponderia à “essência” ou “natureza” de algum objeto ou organismo, no caso, da espécie-tipo. Aqui, a palavra “espécie” significa “tipo de” e designa um certo grau de similaridade. Do conceito tipológico deriva o conceito morfológico: uma morfoespécie é uma espécie reconhecida apenas com base na sua morfologia. Na prática, é o mais utilizado pelos sistematas e taxonômos. Qualquer um que já viu uma descrição de espécie publicada deve ter notado que um novo nome de espécie proposto sempre vem relacionado à um espécime, chamado de holótipo, e a uma diagnose, que aponta os atributos necessários para identicar aquela nova espécie.

Durante a Idade Média, especialmenta a partir do século VII, um dos problemas filosóficos muito discutido foi a questão dos universais ou o problema da correspondência entre nossos conceitos intelectuais e as coisas que existem fora do nosso intelecto. Apesar dos objetivos serem determinados e individuais, nossas representações mentais são realidades infependentes de qualquer determinação particular. A questão se resumo em descobrir em que extensão os conceitos da mente correspondem às coisas que eles representam: o quanto o sapo que concebemos representam do sapo que existe na natureza? Os conceitos apenas palavras ou são mesmo realidade? Uma das respostas para esse tipo de questão quase esotérica vem de uma escola de pensamento medieval chamada nominalismo.

Para os nominalistas, as idéias gerais não têm realidade fora do que é concebido por nossa mente - elas não passam de simples nomes. Real é o objeto considerado. Não há um universal per se. Ele é apenas um nome sem conteúdo concreto, um vocábulo com significado geral. O que isso tem a ver com o conceito de espécie? Bem, há um conceito nominalista de espécie. De acordo com ele, apenas objetos individuais existem na natureza. Tais objetos ou organismos são mantidos unidos por um nome – espécies, dessa maneira, seriam construções mentais arbitrárias, nada mais que isso. Elas não teriam realidade na natureza.

Esse pode ser um conceito filosoficamente interessante mas carece de substância, quando confrontado com situações corriqueiras. O reconhecimento das mesmas entidades como sendo espécies por culturas tão distintas quanto ocidentais brancos e nativos da Nova Guiné, como relatado por Mayr na sua obra de 1988, demonstra como o nominalismo não é a melhor saída para o nosso problema. Qual a chance de culturas tão diferentes, espacialmente separadas por um oceano, chegarem exatamente às memas construções arbitrárias, ou seja, à delimitação de espécies idênticas? Eu diria que ínfima.

O nominalismo foi a base do pensamento biogeográfico do jesuíta Athanasius Kircher (1602-1680). Hoje quase uma anedota, Kircher publicou uma descrição detalhada da Arca de Noé e de todos os compartimentos necessários para acomodar as 310 espécies de animais que ele reconhecia. Esse número é pequeno, mesmo para a época (século XVII), pois se sabia que a diversidade biológica existente era muito maior. Para Kircher, a linguagem natural era a linguagem divina. Na sua obra Arca Noë, de 1675, ele tentou explicar o grande número que teria aparecido após o dilúvio universal através da existência de “cópula promíscua” (hibridação) entre as espécies animais que foram escolhidas por Noé para sua arca, apoiado no conceito nominalista de espécie. Durante os 40 dias e 40 noites que a arca de Noé ficou à deriva, os mais extraordinários intercursos sexuais do mundo animal devem ter acontecido. O leopardo (cujo nome latino é leopardus), por exemplo, seria o resultado do cruzamento entre o leão (leo) e a pantera (pardus). À junção dos nomes do leão e da pantera corresponderia o nome do leopardo. Esse cruzamento é até fácil de ser aceito. Díficil é pensar na cópula entre um camelo e uma pantera, que originaria, nas palavra de Kircher, o "camelopardo" ou girafa, ou no sexo dantesco entre um camelo e um pardal, que resultaria em um avestruz...



Talvez o conceito de espécie mais aceito, especialmente fora da academia, seja o biológico. Ele é ensinado desde o ensino fundamental e está arraigado em nossa percepção sobre o assunto. Dizemos que dois indivíduos são de uma mesma espécie se, ao cruzarem, tiverem descendentes também aptos à reprodução. O grande popularizador do conceito biológico foi o já citado Mayr mas ele não foi o primeiro a descrevê-lo. Quem o fez foi naturalista britânico John Ray (1635-1672). Trabalhando com plantas no seu Historia plantarum (1686-1704), para Ray, se dois ou mais indivíduos se originavam das sementes de uma mesma planta, eles seriam da mesma espécie, não importando o quanto de variação apresentassem. Muito mais próximo do conceito biológico moderno esteve o aristocrata francês George-Louis Leclerc, Conde de Buffon (1707-1788), que foi superintendente do Le Jardim du Roi (Jardim do Rei). No curso dos 44 volumes da sua Histoire Naturelle (História Natural), Buffon fez vários comentários - por vezes de forma confusa e contraditória - a respeito da sua concepção de espécie. Para ele, dois animais pertenceriam à mesma espécie se, através da cópula, eles pudessem se perpetuar; seriam de espécies diferentes se fossem incapazes de produzir filhotes. Segundo ele, no segundo volume do Histoire, "Saber-se-á que a raposa é uma espécie diferente do cachorro se for provado o fato de que, a partir do cruzamento de um macho e uma fêmea desses dois tipos de animais, nenhuma prole nascer; e mesmo que daí nasça uma prole híbrida, um tipo de mula, isso seria suficiente para provar que a raposa e o cachorro não são da mesma espécie - contanto que essa mula seja estéril. Assumimos que, para que uma espécie seja constituída, há necessariamente reprodução contínua, perpétua e invariável".

Para a perspectiva biológica, portanto, uma espécie corresponderia a um grupo de populações naturais que podem cruzar entre si e que permanecem reprodutivamente isoladas de outros grupos. Uma nova espécie adquire isolamento reprodutivo como resultado de um processo de especiação, que só se realiza quando da aquisição, por parte dessa espécie, de um novo, estabilizado e integrado genótipo (o conjunto de genes de um indivíduo), que a possibilitará adquirir, em grande parte dos casos, também um modo de vida particular no seu habitat.

Os mecanismos de isolamento de uma espécie funcionariam como instrumentos de proteção da integridade dos genótipos - sem eles, o cruzamento entre espécies diferentes levaria ao esfacelamento do equilíbrio dos genótipos, que seriam rapidamente extirpados pela seleção natural. A coesão interna das espécies é continuamente reforçada pelo cruzamento. Organismos que pertencem a uma espécie são parte da espécie, não membros dela (uma vez que a espécie, nesse sentido, não é uma classe). A compatibilidade de genótipos de parceiros co-específicos – documentada pela produção de novos genótipos viáveis na sua prole – indica que a população dessa espécie tem o tipo de “harmonia interna” que se esperaria encontrar em partes de um sistema único.

Todos sabem que as espécies não estão soltas no espaço. Elas localizam-se espaço-temporalmente, ocorrendo em locais e períodos específicos. Dentro dessa localização espaço-temporal, espécies correspondem a conjuntos contínuos de organismos, como comentara Buffon no século XVIII. Após o estabelecimento da teoria da evolução no século XIX, ficou clara que a continuidade entre as espécies era decorrente da sua conexão histórica (uma vez que todas as espécies compartilhariam um ancestral comum em algum nível). É interessante notar que o conceito biológico de espécie adequa-se bem à perspectiva da descendência com modificação preconizada pela teoria evolutiva. Nada aqui lembra o idéario platônico de essências fixas e transcendentais já que, se as espécies realmente portassem tais essências, a evolução gradual seria impossível. O fato da evolução mostra que as espécies não têm essências. Sendo assim, espécies podem ser caracterizadas pela presença de variação de organismos dentro de uma população, variação na distribuição geográfica das populações e variação no tempo (evolução).

Apesar do conceito biológico de espécie funcionar para grande parte dos grupos biológicos, com especial ênfase em animais que se reproduzem apenas de forma sexuada, ele encontra problemas quando da definição de bactérias - que trocam material genético livremente, umas com as outras, através de processos de transferência horizontal de porções do DNA -, protistas, vírus ou plantas (muitas das quais formam híbridos reprodutivamente aptos).

Segundo o conceito evolutivo, uma espécie é uma linhagem (uma seqüência de populações ancestrais-descendentes) que evolui separadamente, mantendo sua identidade, a partir de outras espécies. Como característica especial, ela possui tendências evolutivas - o que quer que isso signifique - e destino histórico particulares. Esse conceito foi modificado de idéias de George Gaylord Simpson (1902-1984) e E.O. Wiley, e é utilizado especialmente na paleontologia e também por sistematas que fazem análises filogenéticas. Como aponta Mayr no seu livro de 1988, a definição evolutiva de espécie utiliza termos vagos. O que significaria “manter sua identidade”? Isso implicaria na manutenção das barreiras geográficas? E “tendência evolutiva”? Para muitos, eu estou entre eles, “tendências” só poderiam ser observadas em reconstruções históricas com base em um registro fóssil completo e, ainda assim, seriam meramente descrições da evolução de uma dada linhagem e de alguns dos seus atributos. E o que seria um “destino histórico” particular?

Há uma profusão de outros conceitos. Alguns reconhecem que todas populações isoladas geograficamente constituem espécies distintas ou que uma espécie ancestral deixaria de existir a partir do momento em que uma noca espécie se originasse dela, remontando, de certa maneira, à sistemática filogenética de Willi Hennig (1913-1976). Para outros, uma espécie é a mais extensa unidade na economia natural na qual ocorre competição reprodutiva, por recursos genéticos, entre suas partes. Há ainda conceitos "aberrantes" como o de agamoespécie, exclusiva para grupos biológicos assexuais, como no caso da ocorrência de partenogênese em alguns animais e apomixia em plantas, quando se formam sementes sem fecundação.

No parágrafo final do Origem das espécies, Darwin disse que "há uma grandeza nessa visão da vida". Ele estava falando da sua perspectiva evolutiva de um mundo em constante modificação a partir de processos materialistas, que não necessitavam de nenhum tipo de Deus ex machina ou interventor sobrenatural. As muitas percepções sobre um único conceito, o de espécie, também cabem nessa visão grandiosa do mundo natural, uma visão científica que se baseia no teste de hipóteses e no levantamento de evidências que possam suportá-las. As descontinuidades presentes na natureza tornam óbvia a existência de espécies como entidades naturais. Identificá-las, no entanto, não é tão simples. Cabe à ciência, a partir de trabalho árduo e contínuo, criar formas de descortinar toda a sutileza do mundo natural. Conhecer a natureza das espécies é passo essencial para respondermos à célebre pergunta: "De onde viemos?".

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Homologias

“O que o cientista observa é sempre uma diminuta parcela
no vasto campo dos possíveis objetos de observação”
Sir Peter Medawar, Prêmio Nobel de medicina e fisiologia de 1960

O conceito de homologia é a idéia central da biologia comparada. A primeira definição formal do termo vem do paleontólogo e anatomista britânico Sir Richard Owen (1804-1892), para quem homologia era “o mesmo órgão em diferentes animais sob uma variedade de formas”. Desde o século XIX, o conceito vem sendo discutido, revisado e redefinido. Para o ictiólogo brasileiro Mário de Pinna, do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (refletindo uma linha de pensamento que remonta à Owen), homologia é correspondência entre partes. Essa definição, no entanto, é sintética demais e não suficiente para abarcar toda a complexidade do processo evolutivo, que tem na homologia seu punctum saliens.

Antes de qualquer coisa, explicar homologia é tentar compreender algo “igual mas diferente”. Igual no sentido de compartilhamento de uma origem evolutiva comum (que pode estar escondida em processos de desenvolvimento compartilhados ou genes iguais), diferente no sentido de ter passado por um processo de descendência com modificação no tempo (a evolução). Como apresentar esse conceito sem sobrecarregar as sinapses dos alunos interessados em entender a natureza e sua diversidade?

Mais do que os problemas relativos à própria definição de homologia, ainda esbarramos com uma barreira invisível perpetuamente presente: a linguagem. É óbvio que ela não foi criada em um contexto evolutivo, trabalhando muito mais com analogias do que com homologias. Crescemos utilizando os mesmos termos para estruturas muito diferentes, que nem sempre tem uma relação próxima a não ser pela função aparente que apresentam. As asas são um exemplo claro disso: existem asas de aves, de pterossauros, de morcegos, de insetos, de aviões e da imaginação. É o mesmo termo empregado em situações muito distintas. Isso vale para as pernas de cadeiras, de elefantes, de Homo sapiens, de artrópodes...

Outros fatores ajudam a complicar ainda mais a tarefa dos biólogos. Algumas características presentes em grupos tão distintos quanto lagostins e peixes têm um fundo genético comum – o sistema nervoso de ambos (pertencentes, respectivamente, aos Arthropoda e aos Vertebrata) baseia-se na expressão de um complexo de dois genes homeóticos que são os mesmos nos dois grupos, mudando apenas o seu nome. É correto, portanto, dizer que o sistema nervoso nos artrópodes e nos vertebrados é homólogo? Eles têm uma origem evolutiva compartilhada, pelo menos em algum ponto da sua história, uma vez que os genes são os mesmos. No entanto, o último ancestral comum de artrópodes e vertebrados é o ancestral comum de todos os animais com simetria bilateral, que provavelmente não tinha um sistema nervoso tão complexo quanto o apresentado pelos grupos recentes.

Como resolver essa questão? Para apresentar o mundo vivo em uma perspectiva evolutiva, o significado de sinapomorfias – características presentes em dois ou mais organismos e herdadas do seu ancestral comum mais recente – e homoplasias – similaridades entre organismos não herdadas do seu ancestral comum mais recente – precisa ser enfatizado. Uma maneira de apresentar o que é homologia e o que é homoplasia na sala de aula baseia-se na idéia de que propostas individuais de homologia interagem umas com as outras, já que esse é um conceito comparativo por definição.

Homologia em etapas

Diferentemente do que estamos acostumados a pensar, uma hipótese de homologia sempre envolve dois passos. Há uma série de critérios para o reconhecimento inicial de uma homologia: diz-se que duas estruturas presentes em organismos diferentes são homólogas se têm forma semelhante, se ocupam posição equivalente ou se seguem o mesmo padrão de desenvolvimento (se são, por exemplo, derivados do mesmo grupo de células presentes no embrião). Essa primeira proposta, que alguns chamam de homologia primária, reflete a expectativa de que as partes consideradas são correspondentes.

A etapa seguinte é um pouco mais complicada e demanda a análise comparativa entre as hipóteses de homologia levantadas anteriormente. Quando uma delas sugere o mesmo tipo de relação de parentesco que outras, diz-se que são congruentes.

Vamos supor que levantemos as seguintes hipóteses de homologia primária ao estudar artrópodes e cicloneurálios (grupo que inclui nematódeos e priapulídeos, entre outros): (1) presença de apêndices locomotores articulados, (2) presença de cabeça, tórax e abdômen, (3) presença de sistema nervoso central ao redor do tubo digestório, (4) presença de probóscide com espinhos, (5) presença de troca periódica da cutícula, e (6) presença de segmentos. A hipótese (1) sugere que todos os animais que tenham apêndices locomotores articulados - os artrópodes - formam um grupo natural; (2) sugere que todos os animais que têm o padrão de tagmose cabeça+tórax+abdômen - os artrópodes - formam um grupo natural; (3) sugere que todos os animais que têm sistema nervoso periesofágico - os cicloneurálios - também formam um grupo natural; (4) sugere que os animais com probóscide portando espinhos - os cicloneurálios - formam um grupo natural; (5) sugere que os animais que fazem muda do exoesqueleto - os ecdisozoários, isto é, artrópodes mais cicloneurálios - forma um grupo natural; e, finalmente, (6) sugere que os animais com segmentos formam um grupo natural.


Como visto, as hipóteses de homologia primária (1) e (2) suportam a idéia de que os artrópodes compõem um grupo natural (também chamado de grupo monofilético ou clado); (3) e (4) suportam a existência de um clado composto pelos cicloneurálios; (5) é característica comum ao clado Ecdysozoa. (1) e (2) são hipóteses congruentes entre si, assim como (3) e (4). (5) reúne Arthropoda e Cycloneuralia em um grande grupo monofilético, os Ecdysozoa (Figura 1).

E (6)? Bem, a distribuição da homologia primária representada por (6) causa um certo problema. Dentre os animais examinados nessa nossa análise, apenas os artrópodes e os Kynorhyncha (um dos cicloneurálios) têm segmentação. Assim, (6) sugeriria a fusão de Arthropoda e Kynorhyncha em um clado, o que é incongruente com as hipóteses (3) e (4). Dessa forma, dizemos que a presença de segmentação surgiu duas vezes entre os grupos analisados, uma vez no ancestral comum de todos os artrópodes e uma vez em Kynorhyncha.

Quando hipóteses de homologia primária SÃO congruentes entre si - (1) e (2) ou (3) e (4) - dizemos que elas são atributos modificados do ancestral comum dos grupos em questão e compartilhados por todos os seus descendentes. Na terminologia técnica, essas hipóteses de homologia são sinapomorfias. Quando hipóteses de homologia primária NÃO SÃO congruentes entre si - (6) em relação a (3) e (4) - dizemos que elas surgiram de forma independente durante a evolução dos grupos estudados. Tecnicamente, essas homologias primárias são homoplasias.

O que isso nos diz a respeito do processo evolutivo?

Homologias profundas

Nos últimos anos, um dos ramos de estudo da biologia evolutiva que mais têm fornecido informações para compreendermos como se deu o processo de descendência com modificação dos organismos é a biologia evolutiva do desenvolvimento (comentada anteriormente aqui e aqui). Ela é especialmente importante para a identificação do que podemos chamar de homologias profundas.

É de praxe considerarmos que homoplasias em cladogramas são ruídos ou erros, e que devem ser extirpadas antes que firam alguém ou que provoquem algum estrago irreparável. Essa visão ortodoxa vem sendo desafiada com a descoberta de genes controladores do desenvolvimento, como genes Hox, compartilhados por grupos tão distintos quanto planárias, insetos e peixes. Esses genes, muitas vezes podem desencadear cascatas de expressão de outros genes responsáveis por características como segmentação, apêndices locomotores ou olhos. Para a expressão tanto do coração de um gato quanto das bombas do sistema circulatório de uma borboleta, o mesmo gene é fundamental - no caso, o gene conhecido como Tinman ("homem de lata", em referência ao personagem do Mágico de Oz que procura por um coração). Se formos comparar diretamente, diríamos que a presença de coração em insetos e vertebrados é uma característica homoplástica, que surgiu de forma convergente, porque não seria de se esperar que insetos e vertebrados compusessem um grupo natural, pelo menos não com base em uma série de outras hipóteses de homologia primária que podem ser listadas. Assim, "presença de coração" é uma hipótese de homologia primária que pode ser chamada de homoplasia. Mesmo assim, o arcabouço gênico responsável pela expressão de um coração nos dois grupos citados é o mesmo. É o mesmo gene! "Presença de coração" é uma homologia profunda. No exemplo citado acima, a presença de segmentação, que é uma característica surgida duas vezes na nossa árvore, também é um caso de homologia profunda, já que os complexos de genes relacionados à expressão de segmentos verdadeiros são fundamentalmente os mesmos.

Evolução como bricolagem

Muitos desconfiam de que a evolução não seria suficiente - ou não teria o tempo necessário - para originar toda a diversidade orgânica que podemos ver no planeta. Essas opiniões por vezes baseiam-se na visão de que toda característica que aparece em um grupo deve estar relacionada ao surgimento de um gene novo. Bobagem! A evolução deve ser vista muito mais como um processo de rearranjo de uma base gênica comum do que um processo de aparecimento de novos genes. A evo-devo tem mostrado que uma grande quantidade de genes compartilhada pelos animais (há poucos trabalhos nessa linha utilizando plantas e menos ainda com outros grupos biológicos) deve ter surgido há muito tempo na história, talvez há 600, 700 ou 800 milhões de anos.

Para que essa idéia de processo evolutivo fique mais clara, é importante que o levantamento de homologias seja compreendido sempre como um processo em dois estágios. Dessa forma, pode-ser identificar quais características foram herdadas do ancestral comum mais recente dos grupos sob escrutínio (as sinapomorfias) e quais surgiram de forma independente (as homoplasias). Homoplasias não são necessariamente erros! Sua análise aprofundada pode revelar a existência de homologias profundas, o que demonstra que a evolução NÃO é um processo simples como representado em textos clássicos. Há mais do que apenas o surgimento de características e seleção das “mais vantajosas”... Esse é um passo importante para entendermos o processo evolutivo como um procedimento em que algumas das peças do jogo existem há muito tempo e vem sendo recombinadas e modificadas em um processo contínuo que vai durar enquanto existirem seres vivos.