sábado, 15 de maio de 2010

Tragédia taxonomômica no Butantan

Um incêndio nessa manhã de sábado (15/05) destruiu a maior parte da coleção de serpentes, aranhas e escorpiões do Instituto Butantan, na cidade de São Paulo.

Mais de 100 anos de serviços prestados à ciência (em especial à sistemática) da região Neotropical consumidos em poucas horas... Não há palavras para expressar o sentimento de um taxônomo frente à essa situação.

Leia mais em:
http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u735622.shtml

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Como criar um universo 2

Um dia, uma universitária do Canadá me pediu para definir a realidade para ela, para um trabalho que estava escrevendo para sua classe de filosofia. Ela queria uma resposta em uma frase. Eu pensei sobre isso e finalmente eu disse:
"A realidade é aquilo que, quando você para de acreditar, não desaparece."
Isso foi em 1972. Desde então eu não tenho sido capaz de definir a realidade mais lucidamente.
de Philip K. Dick em How To Build A Universe That Doesn't Fall Apart Two Days Later (1978)

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Como criar um universo


"A ferramenta básica para se manipular a realidade é a manipulação das palavras. Se você puder controlar o significado das palavras, você poderá controlar as pessoas que precisam delas"

de Philip K. Dick em How To Build A Universe That Doesn't Fall Apart Two Days Later (1978)

Philip Kindred Dick (16 de Dezembro de 1928, 2 de Março de 1982) foi um escritor norte-americano, autor de obras como Do Androids Dream of Electric Sheep (1966), que deu origem ao filme Blade Runner (1982), e O Homem do Castelo Alto (1962), que conta uma história alternativa pós-Segunda Guerra Mundial, em um mundo dominado pelo nazismo.

sexta-feira, 26 de março de 2010

Religulous

Acabei de assistir ao documentário Religulous, de 2008, dirigido por Larry Charles, escrito e apresentado pelo comediante norte-americano Bill Maher. O filme foi indicação do saudoso Dedalus (do blog Atlas) durante uma conversa nos corredores da universidade em que lecionamos. Abusando do sarcasmo, Maher faz um trabalho semelhante ao de Richard Dawkins no documentário “The Root of All Evil” (uma síntese das idéias presentes em “Deus, um Delírio”), porém com maior ênfase nos aspectos cômico-trágicos das crenças religiosas. Em tom satírico, nem por isso pouco sério ou raso, o sujeito mostra que, se interpretadas literalmente, muitas das religiões não passam de arremedos de péssimas histórias de ficção.

Segue o trailer do documentário:



Algumas passagens do filme são marcantes:

(...) a religião deve morrer para a humanidade sobreviver. Está ficando tarde demais para deixarmos decisões tão importantes serem tomadas por religiosos, por irracionalistas, por aqueles que tomariam as decisões do estado não com uma bússola, mas pelo equivalente à leitura das tripas de uma galinha
“A religião é perigosa porque permite aos seres humanos, que não têm todas as respostas, acreditar que eles as têm”
“A única atitude apropriada a ser tomada pelo homem sobre as grandes questões não é a certeza arrogante que é a marca da religião, mas a dúvida. A dúvida é humilde, e é isso que o homem precisa ser, considerando que a história humana é só uma sucessão de tomar as decisões erradas
A única atitude apropriada a ser tomada pelo homem sobre as grandes questões não é a certeza arrogante que é a marca da religião, mas a dúvida. A dúvida é humilde, e é isso que o homem precisa ser, considerando que a história humana é só uma sucessão de tomar as decisões erradas
É por isso que pessoas racionais, anti-religiosas, devem perder a timidez, sair do armário e se expressar. E os que se consideram moderadamente religiosos precisam olhar no espelho e reconhecer que o alívio e conforto que a religião lhes traz na verdade vem a um custo muito alto. Se você pertencesse a um partido político ou a um clube social que estivesse ligado a tanta inveja cega, ódio a mulheres, homofobia, violência e desvio de ignorância como é a religião, resignar-se-ia em protesto. Agir de outra forma é ser um conivente, uma esposa da máfia, com os verdadeiros demônios do extremismo que extraem legitimidade dos bilhões de seus companheiros de viagem
Se o mundo chegar ao fim aqui ou em qualquer lugar, ou se avançar com dificuldades no futuro, dizimado pelos efeitos de uma religião inspirada pelo terrorismo nuclear, vamos lembrar qual era o verdadeiro problema. Que aprendemos a precipitar a morte em massa antes de superarmos o distúrbio neurológico do desejo por isso. É isso. Crescer ou morrer
Ao terminar de assistir ao "Religulous", veio a minha mente um conto de Isaac Asimov (1920-1992), um dos mais prolíficos divulgadores das ciências e grande escritor de ficção científica (lembro-me bem que a morte de Asimov, quando eu tinha 12 anos, provocou-me uma inexplicável sensação de vazio. Guardo até hoje a primeira página do Caderno 2 com a notícia triste). A história curta é "Ao cair da noite" (Nightfall), publicada originalmente em 1941 na revista Astounding Science Fiction. Um trecho em especial me chama a atenção sempre que releio o conto:

“__ (...) A sua suposta explicação apóia os nossos dogmas mas, ao mesmo tempo, torna-os desnecessários. O senhor transformou a Escuridão e as Estrelas em fenômenos naturais, despojou-os de todo o significado místico. Isso é uma blasfêmia!
__ Se é, a culpa não é minha. Os fatos existem. Como posso deixar de divulgá-los?
__ Os seus “fatos” são uma fraude e uma ilusão.
__ Como é que você sabe?
A resposta traduzia a certeza de uma fé absoluta.
__ Eu sei!”
Crescer ou morrer.

sábado, 6 de março de 2010

Apenas humanos

“(...) as teorias científicas são interpretações daquilo que percebemos e acreditamos existir no mundo dos fenômenos naturais. O mundo não oferece, de maneira clara, perceptível e inequívoca, os elementos necessários para que possamos compreendê-lo. Nenhuma teoria científica pode se pretender capaz de reproduzir integral e fidedignamente os fenômenos naturais. Toda e qualquer teoria científica, independendo do seu domínio de aplicação, é uma representação da natureza.”
Antonio Augusto Passos Videira (2000), Departamento de Filosofia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

“(...) todos os que deliberam sobre um caso duvidoso devem ser isentos de ódio, de amizade, de ressentimento e de compaixão: aquele obnubilado por essas prevenções tem muita dificuldade de discernir a verdade, e nunca alguém serviu ao mesmo tempo sua paixão e seus interesses. Se vosso espírito é livre, ele pode tudo. Se a paixão o possui, ela domina, e a inteligência nada mais pode.”
Caio Júlio César (5 de dezembro de 63 a.C.), imperator e ditador vitalício de Roma

A linguagem da ciência, como qualquer produto do intelecto humano, é mais do que apenas uma replicação do mundo. Em seu bojo, ela traz objetivos, intenções, desejos e conhecimentos prévios, que partem da premissa de que os discursos dos cientistas sobre a natureza – suas teorias – devem estabelecer diretamente relações de correspondência com a natureza sendo descrita. Assim, os conceitos utilizados pela ciência referem-se ao mundo. Nos últimos tempos, em algumas de minhas aulas ou em correspondências de alunos e curiosos, tenho sido reiteradamente perguntado se acredito que o ponto de vista científico é capaz de explicar a realidade. Minha resposta não poderia ser outra: sim. No entanto, isso não significa dizer que apenas o discurso científico é capaz de expressar o assombro dos homens perante a natureza, em suas mais diferentes manifestações. Além disso, qualquer cientista no século XXI sabe que nossa espécie apenas engatinha na tentativa de compreender o que observamos à nossa volta.


Não conhecemos detalhadamente a constituição de grande parte do universo. Há questões fundamentais pairando sobre assuntos tão díspares quanto a constituição da matéria escura, como se formam buracos negros, se existem “buracos de minhoca”, qual o discreto charme das partículas elementares, como são as interações entre as forças (fraca, forte, gravitacional e eletromagnética) na sua totalidade, se as supercordas compõem o tecido do cosmo, como se parecem os multiversos, onde e como nascem as estrelas... O quadro não se torna muito mais claro quando ao nos aproximarmos do que nos parece mais tangível. Temos várias hipóteses para explicar a origem da vida, muitas delas plausíveis (algo indesejável, uma vez que apenas uma dessas teorias pode estar correta). Qualquer um que acompanha a literatura técnica sabe que existem diversas reconstruções possíveis sobre como se deu a evolução das espécies desde a aurora dos seres vivos. Ainda não compreendemos o que nos estimula a amar e odiar, o que causa a empatia entre pessoas, quais os fatores que possibilitaram o desenvolvimento do nosso complexo comportamento social. Sabemos muita coisa, o que é pouco (pouquíssimo) perante a grandeza de um universo com no mínimo 15 bilhões de anos de idade. O Homo sapiens é uma espécie nova, perdida, cheia de medos e dúvidas, muitas das quais dificilmente serão respondidas antes da nossa extinção.


Cientistas estão à procura de evidências. Richard Dawkins, em sua entrevista na Feira Literária de Paraty (no Rio de Janeiro), ano passado, disse que, se confrontado com Deus (na possibilidade de que ele exista) às portas do céu (ou do inferno?), ele diria algo como “Desculpe-me, Deus, mas simplesmente não havia evidências suficientes”. Para a ciência, testemunhos não são evidências fortes, por vezes nem mesmo sugerem possíveis caminhos a se percorrer para a resolução de algum problema. Válidos nos tribunais, testemunhos pouco podem fazer no contexto do escrutínio científico. A ciência deve ser falseável e repetível e observadores independentes precisam chegar aos mesmos resultados previstos na hipótese inicial. Argumentos de autoridade, baseados exclusivamente na presumida experiência dos envolvidos, devem ser extirpados do discurso científico como tumores malignos. Na biologia, a questão da autoridade imiscuiu-se em áreas de pesquisa tão importantes quanto a taxonomia tradicional, com resultados vexatórios. Em “Biologia, uma ciência única” (publicado no Brasil em 2006), o ornitólogo Ernst Mayr escreveu que a teoria da tectônica de placas não causara grande impacto nas ciências biológicas. Um dos grandes evolucionistas do século passado e dispersalista confesso, com enorme dificuldade em aceitar que os continentes nem sempre estiveram na posição em que se encontram no presente, Mayr simplesmente desconsiderou quase 100 anos de pesquisa geológica e de evidências cumulativas que corroboram a hipótese inicial de Alfred Wegener (1880-1930), um dos primeiros defensores abertos da deriva continental. Mayr também nunca aceitou a sistemática filogenética de Willi Hennig (1913-1976). Por maior que tenha sido a contribuição do velho ornitólogo para a teoria da evolução, utilizar de argumentos de autoridade, tão refinados quanto “eu sei e você não”, é procedimento anticientífico. Com eles, corremos o risco de manipulações, falta de coerência, vaidade excessiva ou mesmo de incorrermos em falhas inconscientes (nem por isso menos irrelevantes).

Há inúmeros relatos de testemunhos de OVNIs, estátuas que choram sangue ou lágrimas verdadeiras, aparições de santos, espíritos, fantasmas, ou milagres. Muitos – talvez a grande maioria, como aponta Carl Sagan em “O mundo assombrado por demônios” (publicado no Brasil pela primeira vez em 1996 e ainda em catálogo) – são frutos de fraudes explícitas. Outros não. Alguém que passou por alguma dessas experiências aparentemente inexplicáveis pode se perguntar: "Como assim? Eu VI essas coisas!". Será mesmo? Nossas observações nunca são livres de hipóteses prévias. Muitas vezes, vemos apenas o que queremos, ou o que o entorno nos sugere. Pessoas em grupos de religiosos (ou fanáticos torcedores de futebol ou amantes da arte ou seguidores de uma tendência política ou cientistas em um congresso de sua área) tendem a adotar linhas de pensamento mais ou menos semelhantes. Como dito acima, comportamentos como o de manada, em que todos correm para o mesmo lado como búfalos fugindo de leões, nem sempre surgem a partir de elucubrações conscientes.

E curas milagrosas? O sujeito entra enfermo em uma igreja e sai um maratonista, pleno de saúde. Descontados a pletora de charlatões em busca de cinco minutos de fama ou de cinco notas de dez, como se explica esse tipo de coisa? Não me atrevo a responder, uma vez que minha área de atuação não é essa. No entanto, ainda não compreendemos as reais capacidades do nosso cérebro. É conhecido o efeito placebo, quando medicamentos sem princípio ativo – compostos de farinha ou apenas água – acabam funcionando. Nosso corpo tem acentua
da capacidade de auto-reparo, o que pode ser potencializado por processos fisiológicos ainda não conhecidos. É comum, por exemplo, adoecermos quando nosso estado de espírito não está exatamente festivo, assim como não é incomum nos sentirmos bem fisicamente quando estamos tranqüilos ou nos sentimos realizados. Evidência do sobrenatural? Não.Nesse contexto, ouvem-se de, maneira recorrente, certas opiniões a respeito de pacientes “desenganados” pela medicina, ou que foram comprovadamente curados após uma levada de cantorias no momento exato em que Jesus Cristo se fez presente no tablado do templo. Para alguns, dizer que algo foi “provado” pela medicina dá ao fato uma aura de segurança e confiabilidade que é ingênua. Na ciência, nada é provado, apenas corroborado momentaneamente. Quanto mais vezes uma hipótese ou teoria se mostra correta, maior o seu poder explanatório e sua capacidade de previsão, o que absolutamente não significa que ela foi provada. Médicos no geral não são bons cientistas. Muitos são crédulos, outros ignorantes. Na minha concepção pessoal, o rótulo "desenganado pela medicina” significa tanto quanto “relógio à prova d’água”. Conto um caso que aconteceu comigo apenas como ilustração divertida: certa vez, fui a um hospital especializado em ortopedia na cidade de Ribeirão Preto-SP. Havia quebrado o dedo indicador da mão esquerda. O sujeito, experiente, observou minha mão, viu meu dedo mindinho (que é torto por natureza, como o do meu pai) e falou: "É, vamos precisar mesmo operar esse seu dedo quebrado...". Mostrei para ele o outro dedo, arroxeado: "O dedo quebrado é esse". O sujeito (repito, um médico de um centro avançado de ortopedia!) ficou bastante encabulado... A maioria dos médicos segue fórmulas e, quando a situação foge ao seu conhecimento restrito, sempre é mais fácil apelar para o imponderável e o desconhecido.

A meu ver, o sobrenatural não é apenas algo ainda incompreendido. Antes da história escrita, ou mesmo nos seus primórdios, acreditava-se que a chuva, os trovões, os raios e os outros fenômenos da natureza eram demonstrações da atividade dos deuses (portanto, "sobrenaturais"). Hoje ninguém mais pensa assim. Há infinitos exemplos como esse.

Não acredito em milagres ou na intervenção divina sobre o homem. Existem questões teológicas muito, muito profundas nesse ponto. Santos são apenas criações humanas (o papa Bento XVI já canonizou mais de dez pessoas durante o seu papado), assim como a tal infalibilidade do papa. As igrejas evangélicas baseiam-se em interpretações humanas sobre textos escritos pelo homem (e apenas por ele) - a Bíblia é cheia de incoerências e incorreções e tem sua raiz em textos muito mais antigos que ela.

Somos todos humanos. Dessa forma, criamos deuses, milagres e lugares inatingíveis pra aplacar um pouquinho da nossa insignificância.

Referências

- Chalmers, A.F. 1993. O que é ciência, afinal? Editora Brasiliense, São Paulo.
- Dawkins, R. 2001. O relojoeiro cego. Companhia das Letras, São Paulo.
- El-Hani, C.H. & Videira, A.A.P. 2000. O que é vida? Para entender a Biologia do Século XXI. Relume Dumará, Rio de Janeiro.
- Mayr, E. 2006. Biologia, ciência única. Companhia das Letras, São Paulo.
- Nelson, G. & Platnick, N. I. 1981. Systematics and biogeography: Cladistics and vicariance. Columbia University Press, New York.
- Sagan, C. 1996. O mundo assombrado pelos demônios: a ciência vista como uma vela no escuro. Companhia das Letras, São Paulo.
- Schmidt, J. 2006. Júlio César. Editora L&PM, Porto Alegre.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

O hipopótamo de Tahl

Certa vez, em uma entrevista, perguntaram ao enxadrista russo Mikhail Tahl se ele pensava em algo além do xadrez quando se encontrava sentado ao tabuleiro. “Certamente”, disse. E citou um exemplo: em um dos muitos campeonatos patrocinados pelo governo da ex-URSS, Tahl encontrava-se em uma posição delicada na partida. Seu primeiro impulso foi sacrificar um dos cavalos, apesar de desconfiar da própria variante. “Comecei a calcular e me horrorizei com a idéia de que o sacrifício dera errado”. Segundo Tahl, as idéias começaram a se amontoar em sua cabeça. Uma torrente caótica de possibilidades, às vezes sem nenhuma relação entre si, crescia sem parar de maneira monstruosa. Nesse momento, o jogador diz que se recordou de uma célebre poesia infantil soviética:

Oh, como é difícil o trabalho
De arrancar um hipopótamo do pântano!

“Não conseguiria explicar porque esse hipopótamo se meteu no tabuleiro, mas a verdade é que, enquanto os espectadores achavam que eu estava analisando as jogadas, eu pensava em como diabos poderia arrancar um hipopótamo do pântano”. Olhando para as peças, Tahl imaginava alavancas, arreios e helicópteros com escadas de corda. Depois de inúmeras tentativas, sem encontrar nenhum método aceitável de retirar o gigantesco artiodátilo do meio da lama, ele desistiu do seu experimento mental e pensou, com amargura “Então, que se afogue!”.

Mikhail Tahl (1936-1992) foi um dos maiores jogadores de xadrez que o mundo conheceu. Aprendeu a mexer os cavalos e torres aos 8 anos de idade e, aos 20, era pela primeira vez campeão soviético. As 23, sagrou-se campeão mundial, após derrotar mestres como Vasily Smyslov, Paul Keres e Bobby Fischer. De fato, Tahl é uma das unanimidades históricas das 64 casas, comparado em genialidade, criatividade e excentricidade aos também unânimes Paul Charles Morphy (sim, meu nome é uma homenagem a ele) e o já citado Fischer. Conhecido como o “mago de Riga” e dono de uma língua ferina, quando perguntado sobre seu estilo agressivo de jogo, Tahl respondeu: “Há três tipos de sacrifícios: os corretos, os incorretos, e os meus”. Como a maioria dos grandes campeões do esporte, Tahl confiava acima de tudo na sua própria capacidade de controlar uma situação surgida no tabuleiro de xadrez, contornando as dificuldades com maestria a fim de chegar a um desfecho favorável.



Mas, por que falar de Tahl? O que as atitudes do enxadrista têm a acrescentar para uma análise dos rumos da ciência e das suas particularidades?

Os maneirismos dos grandes jogadores de xadrez revelam muito sobre o que se pode esperar do comportamento intrínseco ao mundo científico e à divulgação que se faz dele. Diferentemente do jogo dos reis, a ciência nem sempre ganha com a excessiva autoconfiança dos seus praticantes – que por vezes escondem (mal) uma sede por reconhecimento midiático e celebridade instantânea. A complexidade do mundo natural é bem maior que o número de variantes possíveis em uma partida de xadrez, e não pode ser mensurada em uma bancada de laboratório. Aos cientistas cabem responsabilidades que fogem ao determinismo de suas fórmulas e protocolos de trabalho.

Parte dos cientistas acredita cegamente nos resultados de suas pesquisas e no seu absoluto controle sobre elas. Alguns o fazem por ingenuidade, outros por incompetência, alguns parecem nem mesmo se importar com os possíveis desdobramentos, futuros ou imediatos, das suas atitudes. Aliada à insensatez de parte dos pesquisadores, vem a grande mídia e as muitas ferramentas de popularização das ciências, que divulgam com desmedido entusiasmo os deslumbramentos científicos e pouco se prestam à consulta de fontes fidedignas ou segundas opiniões. Os delírios do projeto Genoma, a utilização de células-tronco para pôr um fim às doenças que afligem o homem, os alimentos transgênicos: é longa a lista de áreas promissoras da biologia alardeadas como furos jornalísticos. As possíveis e prováveis conseqüências desses estudos, seus pormenores e idiossincrasias, as dificuldades surgidas e os falsos positivos geralmente ficam fora das primeiras páginas e dos pronunciamentos em horário nobre. Assim, concepções errôneas são propagadas, fornecendo combustível para intermináveis questionamentos ocos.

É certo que o conhecimento científico deve ser levado ao grande público - a ciência é o escudo contra o obscurantismo, um facho de luz na escuridão de um mundo assombrado por demônios, na metáfora do astrônomo e divulgador da ciência Carl Sagan. Entretanto, como qualquer atividade humana, ela tem sua própria sociologia, seus conflitos de interesse e contradições insolúveis que nunca sobem ao palco e que, quando muito, apenas se transformam em anedotas biográficas de livros nunca lidos. Como em um dramalhão televisivo, os bastidores do mundo científico escondem guerras de ego, brigas, vaidade, traições e cobiça. A realidade da academia não destoa do mundo fora dela. Afinal, como diz o policial Alex Murphy, ao final de Robocop II, "somos todos humanos".

Grandes mentes e grandes projetos muitas vezes rendem-se a grandes verbas oferecidas por grandes multinacionais. Organizam-se verdadeiras operações de guerra, com táticas publicitárias ferozes e lavagem de cérebros, para cooptar os corações e mentes do público e de quem quer que interfira com posições contrárias. Para os que insistem no embate resta o ostracismo ou o monólogo.

O projeto Genoma humano, por exemplo, por muitos considerado a maior realização científica do século XX, a mais extraordinária aventura da ciência na atualidade, a busca pelo verdadeiro cálice sagrado, na verdade é apenas o reconhecimento das bases nucleotídicas que compõem o material genético do Homo sapiens. Um esforço extraordinário mas distante das promessas feitas sobre ele. Em qualquer organismo vivo conhecido, o DNA é composto por quatro tipos de unidades básicas, os chamados nucleotídeos: adenina, guanina, timina e citosina (respectivamente, A, C, T e G). A dupla-hélice do DNA corresponde a um código criptográfico com quatro variáveis que podem ser aglutinadas em infinitas combinações de mensagens. O que se fez até o momento no projeto Genoma foi reconhecer como estão amontoados os nucleotídeos no DNA da nossa espécie. É como conhecer as letras impressas nas páginas de um imenso livro sem saber o que elas significam juntas ou em que língua foram escritas. O seqüenciamento dos nucleotídeos é a etapa inicial de uma empreitada mais ampla, que visa ao conhecimento das expressões fenotípicas dos genes, das relações entre eles e da importância dos fatores internos e externos (isto é, “ambientais”) na determinação das características dos organismos vivos. Há ainda muito trabalho a ser feito. Muitos cientistas, entretanto, são céticos a respeito das possíveis conseqüências científicas e das reais intenções de empreendimentos desse porte. O eminente geneticista Richard Lewontin, professor Alexander Agassiz de zoologia e biologia da Universidade de Harvard, vê no projeto Genoma o esforço lobista de organizações voltadas mais para atividades financeiras e administrativas do que para a pesquisa básica em busca do conhecimento sobre o mundo natural. O futuro do Genoma, da clonagem e de outras áreas da biologia molecular não pode ser desvinculado de interesses comerciais.

As discussões acerca do papel do homem no aumento global de temperatura constituem outro exemplo claro de desinformação, interesses econômicos subjacentes e manipulação da audiência pela mídia e pelas empresas patrocinadoras. Há dinheiro envolvido em ambos os lados - não existem vilões e mocinhos nessa história. Pode parecer uma teoria conspiratória porém ao grande público sobram os ditos imperiosos das sumidades que se presumem titereiros debruçados sobre as cordas e o destino de suas criações, mas que, no íntimo, estão vislumbrando como arrancar o hipopótamo de ouro do meio do lamaçal.

A ciência busca aproximar-se da verdade, apesar dela não ser diretamente reconhecível por nenhum método científico. É essa a razão do seu distanciamento dos dogmatismos religiosos e das crenças cegas. Aos pesquisadores, cabe reconsiderar suas percepções de grandeza e reconhecer que o poder e o controle em suas mãos é limitado. Suas verdades são transientes, visto que hipotéticas e baseadas nas evidências disponíveis. Não há como dominar em um laboratório todas as variáveis das equações da natureza, como Tahl fazia com seus peões, cavalos e torres, e essa impossibilidade precisa ser considerada também pelo público não especializado como parte do jogo científico. Assim, a população pode cobrar a verdade por trás das promessas de tantos admiráveis mundos novos que aparecem a cada dia.