domingo, 13 de abril de 2014

Não havia evidências suficientes, Deus!*

Uma vez que uma pessoa se deixa contagiar por uma ideologia ou um cientista por uma hipótese, é difícil não encontrar confirmação em toda parte.
George Johnson, Fogo na mente (1997)
A ferramenta básica para se manipular a realidade é a manipulação das palavras. Se você puder controlar o significado das palavras, você poderá controlar as pessoas que precisam delas.
Philip K. Dick, Como construir um universo que não desmorone em dois dias (1978)
Entre 1988 e 1989, foi publicada uma edição especial do Surfista Prateado, escrita por Stan “The Man” Lee (1922– ) e ilustrada por Jean Giraud Moebius (1938–2012), intitulada Parábola. Nela, Galactus, uma entidade cósmica conhecida como “o Devorador de Mundos”, vem à Terra para destruí-la e se alimentar da sua energia. Para isso, Galactus permite que as pessoas façam o que bem desejarem em seu nome para, assim, encontrarem a salvação – o plano é permitir que a humanidade se aniquile por meios próprios. Nesse ínterim, surge seu ex-arauto, o Surfista Prateado, questionando o direito de Galactus de atacar a Terra com um estratagema tão ardiloso.


Ao final, o vilanesco semideus galáctico parte deixando nosso planeta incólume. O Surfista, alçado à categoria de herói planetário, é recebido na sede das Nações Unidas e fala para o mundo. O diálogo, em uma página tocante, é esse:
Embaixador: Nós fomos visitados por dois seres do espaço. Um, tratado como um deus. O outro, para nossa perpétua vergonha, desprezado e condenado. Mas, finalmente, enxergamos a verdade. O surfista é o verdadeiro salvador das estrelas.
Surfista: Não! Nenhum homem pode ser colocado acima dos demais. A chama divina está em todos... ou em ninguém.
Plateia: Que humildade. A verdade essência da pureza. Só pode ser um santo. Você deve nos liderar! Oriente-nos. Seremos seus discípulos.
Surfista (pensando): Isto é loucura! Eles desejam um líder. Assim como uma criança espera o leite materno. É por isso que se tornam presas fáceis dos tiranos e déspotas. Por que eles não procuram a verdadeira fé em sim mesmos? Por que buscam outro que lhes mostre o caminho?
Parábola é uma belíssima história em quadrinhos, tanto pela espetacular arte de Moebius quanto pela profundidade das questões levantadas pelo roteiro de Stan Lee. 

Theodore Sturgeon (1918–1985) foi um escritor norte-americano de ficção científica. Ficou muito conhecido pela chamada “Lei de Sturgeon”: “Noventa por cento de toda a ficção científica escrita é lixo; mas, se pararmos para analisar, noventa por cento de tudo o que se escreve é lixo”. Em 1967, publicou um artigo na Cavalier Magazine, em que escreveu (na página 38):
Todo avanço que essa espécie já alcançou é o resultado de alguém, em algum lugar, olhar o mundo, sua vizinhança, seu vizinho, sua caverna ou a si mesmo e fazer a próxima questão. Todo erro mortal que essa espécie cometeu, todo pecado contra si e seu destino, é o resultado de não se fazer a próxima questão ou de não se ouvir aqueles que a fizeram.
Certa vez, quando perguntado a respeito do significado da sua marca registrada pessoal (uma letra Q com uma seta apontando para a direita), Sturgeon respondeu: 
Ela significa Faça a próxima questão, e a seguinte, e a seguinte. É o símbolo de tudo que a humanidade criou e é a razão pela qual as coisas são criadas. O sujeito está sentado na caverna e diz ‘Por que um homem não pode voar?’. Bem, essa é a questão. A resposta pode não ajudá-lo, mas agora a questão foi formulada. Qual é a próxima questão? Como? E assim, através das gerações, as pessoas têm tentado encontrar a resposta para aquela questão. Nós encontramos a resposta e nós voamos. Isso é verdade para qualquer realização humana, seja na tecnologia ou na literatura, na poesia, nos sistemas políticas ou em qualquer outro assunto. É isso. Faça a próxima questão. E a outra depois dela.
Com uma das prosas filosóficas mais elegantes do século XX, Bertrand Russell (1872–1970) foi filósofo, lógico, matemático e escritor vencedor do Prêmio Nobel de Literatura, em 1950. Defensor do racionalismo e do ceticismo, Russel escreveu, no primeiro parágrafo do seu ensaio O valor do ceticismo, que pode ser encontrado na coletânea Ensaios Céticos (publicada no Brasil em 2010): 
Gostaria de propor para apreciação favorável do leitor uma doutrina que pode, temo, parecer bastante paradoxal e subversiva. A doutrina, nesse caso, é a seguinte: não é desejável acreditar em uma proposição quando não existe nenhum fundamento para supô-la verdadeira. Devo, é claro, admitir que se essa opinião se tornasse comum transformaria completamente nossa vida social e nosso sistema político; uma vez que ambos são no momento irrepreensíveis, esse fato poderia exercer pressão contra eles. Estou, também, ciente (o que é mais grave) de que tenderiam a diminuir os ganhos dos futurólogos, corretores de apostas, bispos, entre outros, que vivem das esperanças irracionais daqueles que nada fizeram para merecer sorte aqui ou em outro mundo.
Como é possível depreender dos exemplos supracitados, que vêm de autores tão diferentes quanto quadrinhistas, filósofos e escritores de ficção-científica, o ceticismo não é uma perspectiva exclusiva das ciências. Ser cético é questionar qualquer conhecimento, fato, opinião ou crença estabelecida como fato. Filosoficamente significa aceitar apenas informações suportadas por evidências. Até mesmo as religiões podem se beneficiar dele, através, por exemplo, de autoanálises periódicas – ou, de preferência, constantes – que levem ao refinamento das premissas que constituem seu conhecimento de fundo. No entanto, essa me parece uma visão de mundo otimista demais, quase ingênua. As religiões, quando tomadas no geral, não fazem um esforço sincero para depurar o que alguns chamam de suas “superstições infundadas”. Adotar o ceticismo religioso significaria, por exemplo, colocar em dúvida princípios religiosos básicos como a imortalidade, a reencarnação ou a evolução espiritual.

Não se quer criticar aqui as religiões ou fazer generalizações sobre elas, até porque doutrinas religiosas existem aos milhares, muitas delas absolutamente diferentes entre si (compare, por exemplo, os fundamentos do budismo com os da cientologia ou do nuwaubinismo). Religiões são poderosas atividades humanas e provavelmente remontam a tempos remotos pré-científicos, muito antes da invenção de qualquer tipo escrita. Para muitos, a fé pode ser uma fonte de conforto para suas vidas – a devoção ao divino, independente de como ele se expressa, funciona como a tábua de salvação. Pode-se até mesmo construir um cenário adaptacionista para explicar o surgimento e desenvolvimento do misticismo: se funcionava como fator organizador dos agrupamentos sociais primitivos, aparecendo por vezes associado às primeiras tentativas do homem de interpretar os fenômenos naturais, essas protorreligiões teriam sido selecionadas, propagando-se na descendência. O evolucionista britânico Richard Dawkins considera as religiões como memes, ou unidades de evolução cultural, que podem se autopropagar – meme, termo criado por Dawkins em seu clássico O gene egoísta (de 1976), análogo ao gene, seria a unidade mínima de informação transmitida entre representantes da nossa espécie, através de conexões cérebro-cérebro ou entre locais onde essa informação possa estar armazenada, como livros, revistas, páginas de internet, músicas ou programas de TV.


O objetivo deste breve ensaio não é questionar a validade das religiões como formas de conhecimento humano, mas sim comentar impressões a respeito da importância de uma postura cética frente a realidade. É isso que faz o escritor e apresentador pelo comediante norte-americano Bill Maher no documentário Religulous, de 2008. Maher abusa do sarcasmo para enfatizar os aspectos cômico-trágicos das crenças religiosas, em especial do fundamentalismo cristão disseminado por toda a América profunda. Ele faz um trabalho semelhante ao de Dawkins no seu documentário The Root of All Evil (uma síntese das idéias presentes em Deus, um Delírio, de 2006). Em tom satírico, nem por isso pouco sério ou raso, Mahler mostra que, se interpretadas literalmente, muitas das religiões não passam de rascunhos mal feitos de histórias de ficção. Algumas passagens do filme são marcantes:
(...) a religião deve morrer para a humanidade sobreviver. Está ficando tarde demais para deixarmos decisões tão importantes serem tomadas por religiosos, por irracionalistas, por aqueles que tomariam as decisões do estado não com uma bússola, mas pelo equivalente à leitura das tripas de uma galinha.
(...) A religião é perigosa porque permite aos seres humanos, que não têm todas as respostas, acreditar que eles as têm.
(...) A única atitude apropriada a ser tomada pelo homem sobre as grandes questões não é a certeza arrogante que é a marca da religião, mas a dúvida. A dúvida é humilde, e é isso que o homem precisa ser, considerando que a história humana é só uma sucessão de tomar as decisões erradas.
(...) É por isso que pessoas racionais, anti-religiosas, devem perder a timidez, sair do armário e se expressar. E os que se consideram moderadamente religiosos precisam olhar no espelho e reconhecer que o alívio e conforto que a religião lhes traz na verdade vem a um custo muito alto. Se você pertencesse a um partido político ou a um clube social que estivesse ligado a tanta inveja cega, ódio a mulheres, homofobia, violência e desvio de ignorância como é a religião, resignar-se-ia em protesto. Agir de outra forma é ser um conivente, uma esposa da máfia, com os verdadeiros demônios do extremismo que extraem legitimidade dos bilhões de seus companheiros de viagem.
Ao terminar de assistir Religulous, veio a minha mente um conto de Isaac Asimov (1920–1992), um dos mais prolíficos divulgadores das ciências e grande escritor de ficção científica (lembro-me bem que a morte de Asimov, quando eu tinha 12 anos, provocou-me uma inexplicável sensação de vazio. Guardo até hoje a primeira página jornal de cultura com a notícia triste). A história curta é Ao cair da noite (no original, Nightfall), publicada pela primeira vez em 1941 na revista Astounding Science Fiction. Um trecho em especial me chama a atenção sempre que releio o conto:
__ A sua suposta explicação apóia os nossos dogmas mas, ao mesmo tempo, torna-os desnecessários. O senhor transformou a Escuridão e as Estrelas em fenômenos naturais, despojou-os de todo o significado místico. Isso é uma blasfêmia!
__ Se é, a culpa não é minha. Os fatos existem. Como posso deixar de divulgá-los?
__ Os seus “fatos” são uma fraude e uma ilusão.
__ Como é que você sabe?
A resposta traduzia a certeza de uma fé absoluta.
__ Eu sei!
“Saber” a respeito de um fenômeno natural sem que esse conhecimento esteja calcado em evidências empíricas observacionais, experimentais (ou mesmo teóricas) é uma postura contrária ao ceticismo. Grande parte das doutrinas religiosas baseia-se em dogmas, fundamentos doutrinários inquestionáveis pretensamente revelados por deuses, anjos ou espíritos iluminados, todos eles manifestações do imponderável. Visto que seriam as palavras divinas em si, apesar de transcritas e interpretadas por homens, e uma vez tidas como certos pela alta hierarquia da igreja, congregação, seita e similares, elas se transformam em ditos sagrados. Como tal, pouco se prestam a indagações sobre seus fundamentos e passam a corresponder à verdade absoluta. Nesse sentido, o desenvolvimento de uma postura cética torna-se pouco provável no âmbito das religiões, pois o questionamento dos dogmas pode levar à dúvida quanto à validade de um ou outro preceito, conseqüentemente erodindo os pilares sustentadores de parte do pensamento religioso.


O ceticismo e o estímulo à reflexão individual deveriam fazer parte de qualquer currículo escolar, desde os primeiros anos da educação formal. Mas como defender alterações curriculares desse tipo quando 89% dos brasileiros gostariam que o criacionismo (cristão) fosse ensinado nas escolas, e 75% prefeririam que a ideia de criação especial fosse apresentada pelos professores no lugar da teoria evolutiva quando eles fossem discutir a respeito da origem e diversificação dos organismos no planeta? Esses são dados de uma pesquisa feita pelo IBOPE em dezembro de 2004 (código OPP992 – pode ser acessada clicando aqui). Dez anos depois, podemos acreditar em um cenário muito diferente desse? Na edição número 126 da revista Scientific American Brasil, publicada em dezembro de 2012, Rogério de Souza e seus colaboradores da Universidade Estadual de Londrina, revelam que: 
(...) ao menos em parte, a aceitação dessas teorias científicas depende da compreensão que os estudantes têm da metodologia científica. E que ela não é completamente compreendida por uma parte significativa deles. Por outro lado, dados preliminares obtidos junto a professores de ciências e biologia do ensino fundamental e médio indicam que 66% deles concordam que o criacionismo também deva ser abordado em sala de aula como uma teoria alternativa ao darwinismo.
A questão é ainda mais ampla e extrapola a frágil dicotomia ciência-religião. Qual seria o objetivo de se estimular a reflexão individual (ou coletiva), o “pensar com a própria cabeça”, se tudo parece já estar escrito, refletido e pensado? É muito mais cômodo transferir o ato de raciocinar para o padre, o pastor, o papa... ou o jornalista, o professor, o cientista, o intelectual, o escritor...

Como professor, as frases dos estudantes mais desanimadoras que ouço são do tipo “Professor, o que eu tenho que saber?” ou “Professor, o que o senhor quer que eu estude?” ou ainda “Professor, como eu devo pensar a respeito desse assunto?”. Essa atitude sugere a negação do ato de pensar, e é extremamente perigosa. Como conta David Shenk, em seu livro O jogo imortal: o que o xadrez nos revela sobre a guerra, a arte, a ciência e o cérebro humano (na página 233 da edição publicada no Brasil em 2006):
Temos (...) um abismo crescente entre os indivíduos com o pensamento iluminado e cético e os ideólogos fundamentalistas de mentalidade estreita. Estamos também, literalmente, no meio de uma guerra cujas raízes se encontram nessas diferenças. Temos de lutar uma guerra de verdade, com armas de verdade, é claro. Mas também temos de enfrentar esse abismo subjacente a ela. O perigo maior, tanto para nós quanto para as futuras gerações, é o de pararmos de pensar; cabe a nós fazer todo o possível para estimular as mentes afiadas e céticas. 
Parece que é da condição humana ansiar por um führer, um condutor para revelar como agir perante o vazio infinito da existência. Esse guia não precisa, necessariamente, estar personificado: ele se apresenta sob distintas formas, muitas das quais se apoiam abertamente no desestímulo ao livre-pensar. Isso vale para muitos dos formadores de opinião, que por vezes mais reforçam estereótipos do que incitar o espírito crítico do seu público. A democratização da internet, nesse ínterim, tem papel ambíguo (ou paradoxal, dependendo do ponto de vista adotado). Apesar de possibilitarem a veiculação de conteúdo diversificado, por mais obscuro que seja, blogs e redes sociais podem funcionar como ferramentas para a reiteração de informações baseadas em fontes desconhecidas, tendenciosas e até mesmo cheias de interesses sub-reptícios.

Ainda que impressas em uma forma de arte ainda tida como menor ou infantil, as sábias palavras do Surfista Prateado bem se encaixam nesse quadro: “Eles desejam um líder, assim como uma criança espera o leite materno. É por isso que se tornam presas fáceis dos tiranos e déspotas”.


* “Não havia evidências suficientes, Deus!” foi uma frase proferida por Richard Dawkins na Feira Literária de Paraty (a FLIP), em 2011, quando perguntado pelo entrevistador Silio Boccanera o que ele diria caso encontrasse o criador, caso ele existisse. Dawkins estava parafraseando Bertrand Russell. Parte da entrevista pode ser vista clicando aqui