terça-feira, 10 de junho de 2014

Da relação entre evolução biológica e esportes

Eu perdi mais de 9.000 arremessos em minha carreira. Eu perdi quase 300 jogos. Em 26 vezes, confiaram em mim para dar o lance vencedor e eu errei. Eu falhei muitas e muitas e muitas vezes na minha vida. E foi por isso que tive sucesso.
Michael Jordan

Em tempos de Copa do Mundo da Fifa e da seleção da Confederação Brasileira de Futebol, a biologia evolutiva pode ser uma ferramenta interessante para se discutir o papel dos esportes na natureza humana. Questões sobre as origens das competições esportivas e porque elas atingiram tamanha centralidade nas culturas contemporâneas não são de interesse exclusivo dos programas de debate jornalístico e das mesas-redondas pós-jogo nos domingos à noite. 

Fonte: http://www.etravelphotos.com/ 
Na sua obra magna On the origin of species (publicada originalmente em 1859), o naturalista britânico Charles Darwin (1809-1882) defendia que os organismos estavam em luta perpétua pela vida e que somente os mais bem-adaptados sobreviveriam, deixando uma maior quantidade de filhotes e, consequentemente, aumentando a frequência de suas características na população de uma geração para outra. O raciocínio darwiniano partia da existência de variação prévia nas populações. Os organismos, portanto, adaptam-se às condições ambientais que enfrentam e esse processo, se continuado por longo períodos, pode levar ao surgimento de novas espécies.

Adaptações são as propriedades dos seres vivos que os tornam capazes de sobreviver e de se reproduzir na natureza. Segundo a teoria evolutiva clássica, qualquer atributo que leve um organismo a deixar mais descendentes do que a média da população, isto é, que permita taxas diferenciais de reprodução, terá frequência maior nas gerações subsequentes.

Para que a seleção natural ocorra são necessárias algumas condições:

1. Os organismos precisam ser capazes de reproduzir;
2. Suas características devem ser hereditárias;
3. Deve existir variação de caracteres individuais entre os membros de uma população; 
4. É necessária a ocorrência de variação da aptidão (fitness) do organismo, de acordo com o estado de um determinado caráter herdável. Por aptidão entende-se o número médio de descendentes diretos deixados por um membro médio da população.

Darwin não foi capaz de explicar qual o mecanismo da hereditariedade. Esse problema só encontrou solução quando as ideias de Gregor Mendel (1882-1884) passaram a constituir a teoria da hereditariedade aceita, a partir da década de 1920. Ronald Fisher (1890-1962), J.B.S. Haldane (1892-1964) e Sewall Wright (1889-1988) conseguiram demonstrar que a seleção natural poderia operar em conjunto com a genética mendeliana. Assim estabeleceu-se o que se conhece hoje como a Síntese Moderna da Evolução ou Teoria Sintética da Evolução, por muito tempo tido como o paradigma da teoria evolutiva, centrada no papel preponderante da seleção natural atuando na variedade pré-existente originada a partir de mutações aleatórias e recombinações cromossômicas.

Na perspectiva da Síntese Moderna, a seleção natural leva à evolução a partir das mudanças no ambiente, em decorrência do surgimento de uma nova forma que sobrevive melhor do que a forma vigente. A variação seria resultado de mutações aleatórias, ocorridas durante a replicação do DNA, e da recombinação cromossômica, no processo de meiose que ocorre durante a formação dos gametas. Ao surgir um novo genótipo recombinante não existiria qualquer tendência dele estar relacionado a uma melhora adaptativa. Nessa visão, a pressão seletiva sobre as características dos indivíduos, provenientes de fatores ambientais, leva à fixação de determinados atributos em detrimento de outros. Esse fenômeno é conhecido como mudança da frequência genética nas populações.

Em linhas gerais, a seleção natural é tida como a explicação para a existência de adaptação. Sua atuação proporciona o surgimento de um pico adaptativo no qual o organismo com maior valor de aptidão para um determinado caráter tem vantagem sobre outro com um valor de aptidão menor – a pressão de seleção encaminharia os indivíduos a um estado adaptativo ótimo ou sub-ótimo. Como diz o escritor Max Barry, em seu livro Homem-máquina (originalmente publicado em 2011, página 201):
Ninguém pode ser perfeito na maior parte do tempo. Ninguém pode ser perfeito apenas em alguns momentos. Ou você é perfeito ou não é. E eu não acho que a biologia trabalhe com a noção de perfeição. Biologia é eficiência aproximada. É uma questão de ser razoavelmente boa. Um vácuo é perfeito. Pi é perfeito. A vida não.
A psicologia evolutiva baseia-se em cenários selecionistas para explicar a evolução do comportamento humano. Por muito tempo após a publicação do On the origin of species, estudos sociais, comportamentais e psicológicos passaram ao largo da teoria evolutiva darwiniana. Segundo professor de psicologia David Buss, da Texas University, a psicologia evolutiva é uma tentativa de reunir todas as disciplinas humanas, antes fragmentadas e muitas vezes contraditórias, em um todo logicamente integrado que incorpore os conceitos da teoria da evolução de forma correta e exclua, ao mesmo tempo, todas as percepções e crenças tradicionalmente aceitas que não façam sentido no contexto evolutivo. A psicologia evolutiva pode ser vista como um programa de pesquisa que busca compreender a origem do ciúme, habilidades de raciocínio, processos decisórios, linguagem, preferências de acasalamento, status social, agressão e sexo. Para Buss, como todo tipo de comportamento depende de mecanismos psicológicos complexos, e todos os mecanismos psicológicos, ao menos em algum nível, resultam de um processo de evolução por seleção natural, todas as teorias psicológicas são implicitamente teorias psicológicas evolutivas. A evolução é responsável por quem somos hoje.

Fonte: http://www.animalgalleries.org/
É nesse contexto que se pode discutir a conexão entre esportes e evolução, mais especificamente os mecanismos da seleção natural e da seleção sexual, tanto para se analisar o esporte como analogia à competição no mundo orgânico, quanto para se tentar entender a relação entre torcer / praticar esportes e algum tipo de vantagem seletiva surgida durante a história evolutiva dos hominídeos.

Apesar da sua importância em todas as sociedades humanas desde tempos imemoriais, no geral o esporte tem recebido pouca atenção de biólogos evolucionistas. Isso é surpreendente porque a universalidade dos esportes sugere que sua origem possa ser bem compreendida no contexto da biologia evolutiva.

Segundo Michael Lombardo, do Departamento de Biologia da Grand Valley State University:
As características das brincadeiras entre animais sugerem que os esportes se originaram dessa forma. As brincadeiras entre mamíferos jovens, incluindo humanos, frequentemente mimetizam comportamentos (por exemplo, captura de presas, fuga de predadores, lutas) necessários à sobrevivência. O comportamento de humanos brincando também mimetiza aqueles presentes em muitos esportes (correr, perseguir oponentes, lançar e interceptar projéteis). Em animais não-humanos, as brincadeiras tendem a ocorrer durante um período crítico para o desenvolvimento do cerebelo e para a diferenciação de fibras musculares. Diferentemente das brincadeiras entre os não-humanos, as nossas podem persistir até a idade adulta.
Complexas organizações se desenvolveram, especialmente ao longo dos últimos 150 anos, para regular e promover competições atléticas. Tais competições são importantes eventos sociais, com público de mais de dezenas de milhares de espectadores nas partidas (por exemplo, nos jogos olímpicos e em finais de campeonatos de futebol ou basquetebol). Apesar dessas competições atléticas serem frequentemente simples (por exemplo, quem corre por 100 metros mais rápido?), envolverem poucos participantes e não terem, aparentemente, um propósito biológico direto (como vencer a corrida dos 100 metros afeta a sobrevivência e sucesso reprodutivo do campeão?), elas afetam boa parte da população mundial. A significância social e política global das Olimpíadas de Berlim em 1936, em pleno governo nazista na Alemanha e às portas da Segunda Guerra Mundial, também não pode ser negligenciada.

Competições atléticas são parte importante do tecido social nas sociedades contemporâneas e é interessante notar que, no geral, mais homens do que mulheres, em todas as idades, praticam e assistem a esportes, ao vivo ou pela televisão. Como conjectura a psicologia evolutiva, é possível dizermos que atletas campeões alcançariam maior status dentro dos seus grupos sociais e, dessa forma, aumentariam suas oportunidades de sobrevivência/reprodução. Isso sugere a influência da seleção natural em moldar as características dos atletas e dos esportes dos quais eles participam. 

Essas observações levantam importantes questões sobre o papel do esporte na natureza humana: (1) Como e por que o esporte começou?; (2) Por que os esportes são primariamente fenômenos masculinos?; (3) Por que atletas campeões em determinados esportes frequentemente alcançam maiores status, aumentando suas oportunidades de reprodução, do que atletas em outros esportes e empreitadas?; (4) Quais são os papeis relativos da seleção intra e intersexual na moldagem das características do esporte? (5) Por que os esportes obtiveram tamanha importância nas culturas modernas? 

Para a psicologia evolutiva, um cenário possível para explicar a existência, permanência e diversificação dos esportes baseia-se na seleção sexual, descrita por Darwin como a luta entre indivíduos de um sexo, geralmente os machos, pela posse do outro sexo - a seleção sexual seria responsável pela evolução de todo atributo que desse aos organismos portadores alguma vantagem reprodutiva, mesmo que ele, a priori, pareça minimizar a sua capacidade de sobrevivência (a cauda frondosa de um pavão macho é um exemplo típico).

No início, o esporte teria se originado a partir de brincadeiras e treinamento para luta, caça e guerra, possibilitando ao homem um teste para suas habilidades na competição por fêmeas e também como uma forma de avaliar aliados e rivais em potencial. Os comportamentos e atributos físicos associados com o sucesso atlético seriam subprodutos de características que evoluíram no contexto das competições físicas entre machos (relacionadas à seleção sexual) e à caça e guerra em sociedades primitivas. Esses subprodutos são conhecidos como exaptações, termo cunhado pelos paleontólogos Stephen Jay Gould (1941-2002) e Elisabeth Vrba para designar mudança de função de uma estrutura durante a evolução – uma adaptação que não teria evoluído a partir de pressões seletivas relacionadas à sua função atual. A seleção sexual, portanto, explicaria porque homens são mais interessados em esportes, como praticantes e também como espectadores, do que as mulheres. Obviamente nem todos os atributos existentes nos organismos, incluindo aí o Homo sapiens, são resultado direto do processo de seleção natural. No entanto, é consenso entre boa parte dos evolucionistas que, a despeito de como uma característica tenha se originado, ela será selecionada positivamente se permitir maiores taxas de sobrevivência e reprodução quando comparados a outros indivíduos da mesma espécie.

Fonte: http://www.picturesnew.com/
Além de explicações sobre a origem histórica dos esportes e sua relação com a seleção natural/sexual, uma questão evolutiva fundamental a ser discutida diz respeito aos diferentes tipos de doping e às possibilidades do Homo sapiens mudar sua constituição física (e, talvez, suas habilidades atléticas) a partir do desenvolvimento científico-tecnológico. Esse é um dos tópicos de pesquisa do transhumanismo, filosofia que busca discutir a transcendência tecnológica da condição humana (e discutida anteriormente nesse blog).

O crescimento e a recuperação muscular são controlados por sinais químicos, os quais, por sua vez, são regulados por genes. A perda muscular devido à idade ou doenças pode ser revertida pelo aumento ou bloqueio desses sinais, através da adição de um gene sintético regulador. Os atletas poderiam usar a mesma técnica para aumentar o tamanho, a força e a resistência dos seus músculos, e o tratamento seria virtualmente indetectável. Quando a terapia gênica entrar em uso clínico, pode ser difícil evitar seu abuso. Dado um quadro de busca incessante pelo ganho de desempenho em esportes de alto rendimento, a maneira de encarar o melhoramento biológico a partir da ciência e da tecnologia terá que mudar.

Na contemporaneidade, muitas realidades técnicas estão em emergência promissora. Entram aqui coisas como a confecção de medicamentos que reduzem efeitos colaterais, engenharia tecidual para a regeneração de células e órgãos, e nanotecnologia utilizada em tratamentos de saúde. A realidade potencial destas técnicas permite expandi-las para o aperfeiçoamento das propriedades naturais humanas, como o aumento das capacidades cognitivas e físicas, regulação da sensibilidade ao stress ou a dor. A possibilidade de expandir os limites físicos, criando atletas em certo sentido super-humanos, gerará impactos expressivos nos esportes, e terá que ser analisada tanto em termos econômicos quanto biológico e filosóficos. Um atleta transhumano seria ainda um Homo sapiens ou estaríamos já falando de uma pós-humanidade? Teriam que ser criadas competições específicas para transhumanos? Torceríamos com igual paixão para o Transhuman Football Club? 

A relação entre esportes e a teoria evolutiva, especialmente o mecanismo da seleção natural e seu papel no aumento da aptidão local, ainda precisa ser investigada com mais detalhes. É possível que exista uma relação entre a prática e o apreço por esportes e possíveis estratégias evolutivas surgidas há milhões de anos entre os hominídeos. Isso vale também para as implicações sociais dos esportes, relativas à psicologia evolutiva e à uma moralidade e éticas pós-darwinianas, que discute como o desenvolvimento científico-tecnológico influencia o futuro da nossa espécie.

A biologia evolutiva é capaz de construir cenários para responder a questões como “O que representaria um jogo em termos evolutivos?”, “Por que torcemos?”, “Por que praticamos esportes?” e “Há limites aceitáveis para a melhoria do desempenho atlético?”. Mais do que apenas entretenimento ou procrastinação, os esportes remontam a comportamentos muito anteriores à origem dos hominídeos e, além de arraigadas à história evolutiva dos animais, estão no cerne de contendas sociais e científicas com potencial profundamente explosivo. Pense nisso na próxima vez em que estiver assistindo ao bate-bola na televisão!

Fonte: http://www.zimbio.com/

Referências sugeridas

Block, A. & Dewitte, S. 2009. Darwinism and the cultural evolution of sports. Perspectives in Biology and Medicine, 52(1), 1–16.
Buller, D.J. 2008. Varieties of evolutionary psychology. Em: Hull, D.L. & Ruse, M. (eds.) The Cambridge Companion to the Philosophy of Biology, Cambridge University Press, p. 255-274.
Buss, D.M. (org.) 2005. The handbook of evolutionary psychology. John Wiley & Sons, Inc. 
Lombardo, M.P. 2012. On the Evolution of Sport. Evolutionary Psychology, 10(1):1–28.
Sweeney, H.L. 2012. Doping genético. Scientific American Brasil Especial – A surpreendente complexidade da máquina humana, 28–34.
Urho, M., Kujala, U.M., Sarna, S., Kaprio, J., Tikkanen, H.O. & Koskenvuo, M. 2000. Natural selection to sports, later physical activity habits, and coronary heart disease. British Journal of Sports Medicine, 34, 445–449.

sexta-feira, 6 de junho de 2014

Pandoravirus, chave para a biosfera oculta?

A ciência é a busca de curvas simples, previsíveis, formas compactas de apresentar os dados. Existe sempre, porém, o perigo de que as curvas que vemos sejam ilusórias, como imagens de animais nas nuvens. A verdade é que sempre ficamos com uma dúvida angustiante: estamos deixando de lado algo importante? 
George Johnson, Fogo na mente (1997)

Há alguns meses, fui visitar a casa da minha mãe no interior do estado junto com meu irmão. No carro, começamos a conversar sobre cinema. Em certo momento, discutíamos a respeito de Hellraiser: Renascido do Inferno, um filme britânico de horror escrito e dirigido por Clive Barker em 1987. Discordamos frontalmente a respeito da qualidade do filme (para meu irmão, é uma porcaria; penso que a película tem momentos interessantes, especialmente se consideramos seu orçamento restrito de apenas 1 milhão de dólares).


A peça chave da história é um quebra-cabeça em forma de caixa chamado “Caixa de Lemarchand”. No universo criado por Barker, a mais conhecida dessas caixas recebe o nome de Configuração do Lamento. Essa caixa é um mecanismo místico que funciona como uma porta, ou uma chave, para outro plano de existência. A resolução do quebra-cabeças cria uma ponte para essa nova dimensão, um reino de prazer eterno e inimaginável. No filme, Frank Cotton resolve o quebra-cabeças e abre o cubo, penetrando em um mundo labiríntico habitado por cenobitas, criaturas demoníacas vestidas de couro, deformadas, com escarificações e lacerações pelo corpo, que levam ao extremo o ideal sadomasoquista: alimentam-se de sensações, sobretudo dor e sofrimento, impingidas a outras pessoas. A única emoção que conhecem é o êxtase experimentado pela flagelação. Preso nessa dimensão – uma versão contemporânea e bondage do inferno bíblico –, Frank tem seu corpo dilacerado por ganchos e correntes, que rasgam sua carne em pedaços, fazendo-o experimentar o máximo de prazer através da tortura infinita (essa é a premissa do filme, não é culpa minha!). 

A caixa de Lemarchand, supostamente criada pelo arquiteto e artesão francês Phillip Lemarchand em 1749, também é conhecida como Caixa Miraculosa ou Caixa de Pandora. Na mitologia grega, Pandora – palavra derivada de pan, “todo”, e dõron, “presente” – é a primeira mulher, sobre a qual pouco se sabe. Pandora foi feita no céu por Hefasto e Atena, e cada um dos deuses teria a aperfeiçoado. Vênus deu-lhe a beleza, Mercúrio, a persuasão, Apolo, a música. Assim dotada, Pandora fora enviada à Terra e oferecida a Epimeteu. Ele tinha em sua casa uma caixa, em que guardava os artigos que considerava malignos. Pandora, tomada de curiosidade para conhecer o conteúdo daquela caixa, certo dia destampou-a. Com isso, ela liberou uma multidão de pragas que atingiram o homem, tais como a gota, o reumatismo, a cólica, a inveja, o despeito e a vingança. Vendo o que tinha causado, Pandora apressou-se em colocar a tampa na caixa, mas todo seu conteúdo havia escapado, com exceção da esperança, que ficara no fundo. 

Em julho de 2013, uma descoberta extraordinária “abriu a caixa de Pandora” da biologia evolutiva, levando ao questionamento de uma série de pressupostos aceitos há mais de cem anos. Desde o On the origin of species de Charles Darwin (publicado em 1859), imagina-se que todos os organismos existentes no planeta estejam conectados em uma imensa árvore de vida em que cada galho corresponderia a uma espécie. É possível que tenham existido, desde o organismo primordial, mais de um bilhão de espécies, todas elas aparentadas, em graus diferentes. Tem sido difícil, ou mesmo impossível, posicionar os vírus nessa árvore. A descrição do Pandoravirus salinus e do Pandoravirus dulcis, dois super-vírus encontrados em amostras de água coletadas respectivamente no Chile e na Austrália, com cerca de 1 micrômetro de comprimento e 0.5 micrômetros de diâmetro (maiores até que alguns organismos eucariotos!), trouxe a discussão à tona mais uma vez. Eles se assemelham aos demais vírus conhecidos, mas também têm particularidades que fizeram alguns pesquisadores considerarem-nos como pertencente a um domínio exclusivo, um grupo que pode ter se diferenciado dos demais seres vivos existentes no planeta há mais de três bilhões de anos. A descoberta dos Pandoravirus também abre perspectivas para novos estudos sobre a possibilidade de existência de uma “biosfera oculta” na Terra, formada por potenciais formas alternativas de vida, com um bioquímica radicalmente distinta da conhecida.


É consenso dizer que os vírus são parasitas intracelulares obrigatórios. Eles têm seu genoma composto por DNA ou RNA, que dirige a síntese e a “montagem” dos componentes virais, formando novos vírus, usando a maquinaria metabólica da célula parasitada. Em termos estruturais, os vírus são extraordinariamente simples, as máquinas de sobrevivência e reprodução mais eficientes e otimizadas de todo o planeta. Eles são pouco mais do que um envoltório formado por proteínas (o capsídeo) envolvendo o material genético. 

Como citado acima, a despeito do seu sucesso evolutivo, os vírus não se encaixam em nenhuma posição tradicional entre os superdomínios da vida, que são três, seguindo a classificação de Carl Wöese: (1) Archaea, composto pelas bactérias extremófilas, que vivem em ambientes de alta salinidade, temperaturas altíssimas ou profundidades abissais; (2) Eubacteria, as bactérias “clássicas”; e (3) Eukarya, que reúne todos os seres vivos que portam um envoltório nuclear, a carioteca, incluindo aí organismos tão distintos quanto amebas, sequóias, moscas e dinossauros. Por não terem metabolismo próprio (conjunto de reações químicas através das quais os seres vivos constroem e mantêm seus corpos, crescem e realizam tarefas como locomoção e reprodução) e serem replicados por montagem de partes pré-formadas ao invés de se multiplicarem por fissão binária, os vírus tradicionalmente não se ajustam aos sistemas de classificação biológica. Alguns autores nem mesmo os consideram como seres vivos. Eles não são capazes de importar nutrientes e energia do meio ambiente, não se movem, não se dividem, não crescem... No entanto, vírus se reproduzem, interagem com o aparato metabólico da célula hospedeira e subvertem o metabolismo desta, utilizando-o na produção das suas réplicas. 

Os Pandoravirus não se encaixam exatamente na descrição dos vírus tradicionais. Eles têm genes comuns aos de vírus gigantes e têm um ciclo de vida tipicamente viral, com absorção, penetração, liberação do material genético do vírus no interior da célula hospedeira, transcrição e replicação do material genético viral, montagem dos novos vírus e liberação. Nos Pandoravirus faltam muitas das características de organismos celulares como as bactérias (eles não produzem suas próprias proteínas, não produzem energia via ATP ou se reproduzem por divisão). No entanto, eles são maiores que muitas bactérias, não apenas em tamanho como na quantidade de bases nitrogenadas do seu material genético, como mostra a figura abaixo – P. salinus tem 1.9 milhão de bases enquanto P. dulci tem 2.5 milhões. Os Pandoravirus têm apenas 7% dos seus genes semelhantes aos genes conhecidos para qualquer espécie classificada entre os três superdomínios da vida.

A falta de similaridade poderia ser um indicativo de que eles se originaram de um organismo anterior ao surgimento do ancestral comum de toda a vida reconhecida no planeta. Seria essa espécie viral o primeiro organismo descrito da “biosfera oculta”? Tal biosfera – ainda hipotética já que não há qualquer confirmação da sua existência – seria formada por microorganismos com processos bioquímicos e moleculares radicalmente diferentes das formas de vida conhecidas. Esse termo foi cunhado pelos pesquisadores Carol Cleland and Shelley Cooper em 2005. Para eles:
Encontrar uma forma de vida que difere daquela que conhecemos em sua arquitetura molecular e bioquímica seria profundamente importante tanto de uma perspectiva científica quanto filosófica. Há uma quantidade convincente de evidências de que a vida conhecida hoje na Terra compartilha um ancestral comum universal [no inglês, LUCA, abreviação de Last Universal Common Ancestor]. É improvável que o LUCA tenha sido a primeira forma de vida uma vez que ele já seria muito sofisticado, tendo ácidos nucléicos e proteínas, assim como processos metabólicos complexos. Em suma, a vida como a conhecemos representa um exemplo único de um estágio muito avançado (Cleland & Cooper, 2005, p. 165).  
Organismos de uma “biosfera oculta” poderiam ter sobrevivido de forma independente, em seu próprio sistema de relações predador-presa, tornando-se adaptados a ambientes menos hospitaleiros para a vida microbiana que conhecemos. Ao invés de serem eliminadas, essas formas de vida talvez tivessem evoluído de maneira a não competir com os organismos familiares a nós.

É possível que os Pandoravirus pertençam a alguma linhagem muito distinta dos três domínios tradicionalmente aceitos para a vida no planeta, constituindo, quem sabe, representantes de um quarto domínio. Talvez estejamos às vésperas de encontrar toda uma nova biosfera, provavelmente muito distinta dos seres vivos que a ciência já descreveu. Parafraseando o bardo William Shakespeare, pode haver mais entre os mares e a Terra do que os biólogos evolutivos e seus microscópios eletrônicos poderiam imaginar.

Referência sugerida
Cleland, C. & Copley, S. D. 2005. The possibility of alternative microbial life on Earth. International Journal of Astrobiology, 4, 165-173.
Nadège Philippe et al. 2013. Pandoraviruses: amoeba viruses with genomes up to 2.5 Mb reaching that of parasitic eukaryotes. Science, 341, 281-286.

Imagens: