segunda-feira, 26 de outubro de 2015

O hipopótamo, o enxadrista e a arrogância dos cientistas


Nas últimas semanas, a discussão a respeito da “Pílula da USP”, um suposto fármaco capaz de curar o câncer, tem tomado conta de parte da comunidade científica brasileira. O debate, infelizmente, apóia-se em teorias conspiratórias e a cada dia ganha ares de histeria coletiva. Desconsidera, quando não nega explicitamente, a importância de se divulgar como o respeito a certos protocolos na ciência é crucial e como a atividade busca incessantemente questionar as hipóteses levantadas nas bancadas e laboratórios. O status de hipótese científica deve ser dado apenas àquelas ideias que correspondem a conjecturas testáveis e que são, portanto, falseáveis. Assim, elas podem vir a ser refutadas ou corroboradas segundo critérios delimitados e evidências adicionais, mas nunca confirmadas como verdades inquestionáveis ou dogmas. 

Ser diagnosticado com câncer é ser confrontado, diretamente e de maneira brutal, com sua própria finitude (tive uma experiência muito próxima com essa questão – meu pai faleceu há pouquíssimo tempo por conta de um tumor nos rins que se alastrou rapidamente). O jornalista Christopher Hitchens (1949–2011) começa assim o seu inacabado último livro, em que relata os dias finais da sua existência: “Mais de uma vez em minha vida acordei com a sensação de estar morto. Mas nada me preparou para o começo da manhã de junho em que recobrei a consciência sentindo-me como que acorrentado a meu próprio cadáver”.

A tendência (compreensível e perfeitamente justificável) de quem se encontra nessa situação é o apego a qualquer alternativa, por mais infundada que possa parecer ao espectador externo. Essa esperança por vezes vem da confiança no discurso científico ou naquele que usa de algum jargão típico das ciências, e ganha força, ímpeto e autoridade. Nesse ponto, pode-se ouvir o tique-taque da bomba-relógio... 

Quando o cientista não assume a responsabilidade pelo seu trabalho de pesquisa, seus pronuciamentos, seus anúncios à mídia, quando não leva em conta a necessidade de construir suas hipóteses a partir de evidências e de testes controlados, quando imagina estar em um pedestal de sabedoria inconstável e inabalável, quando ele se deixa levar pela lógica perversa do mercado e por sua própria arrogância, toda a sociedade perde.

Discuti um pouco a respeito desses temas no meu livro “O hipopótamo de Tal”, publicado recentemente. O ensaio que dá título à obra segue abaixo.

O hipopótamo de Tal

As ideias são ninharias. O que conta é o que fazemos com elas.
Isaac Asimov, Antologia 2 (1992)

Certa vez, em uma entrevista, perguntaram ao enxadrista russo Mikhail Tal (1936–1992) se ele pensava em algo além do xadrez quando se encontrava sentado ao tabuleiro defronte a um adversário. “Certamente”, disse. E citou um exemplo: em um dos muitos campeonatos patrocinados pelo então governo soviético, Tal encontrava-se em uma posição delicada na partida. Seu primeiro impulso foi sacrificar um dos cavalos, apesar de desconfiar da própria variante. “Comecei a calcular e me horrorizei com a ideia de que o sacrifício dera errado”. Segundo Tal, os pensamentos começaram a se amontoar em sua cabeça. Uma torrente caótica de possibilidades, às vezes sem nenhuma relação entre si, crescia sem parar de maneira monstruosa. Nesse momento, o jogador diz que se recordou de uma célebre poesia infantil soviética:

Oh, como é difícil o trabalho
De arrancar um hipopótamo do pântano!

“Não conseguiria explicar porque esse hipopótamo se meteu no tabuleiro, mas a verdade é que, enquanto os espectadores achavam que eu estava analisando as jogadas, eu pensava em como diabos poderia arrancar um hipopótamo do pântano”. Olhando para as peças, Tal imaginava alavancas, arreios e helicópteros com escadas de corda. Depois de inúmeras tentativas, sem encontrar nenhum método aceitável de retirar o gigantesco artiodáctilo do meio da lama, ele desistiu do seu experimento mental e pensou, com amargura “Então, que se afogue!”.

Mikhail Tal foi um dos maiores jogadores de xadrez que o mundo conheceu. Aprendeu a mexer os cavalos e torres aos oito anos de idade e, aos vinte, era pela primeira vez campeão soviético. Aos 23, sagrou-se campeão mundial, após derrotar mestres como Vasily Smyslov (1921–2010), Paul Keres (1916–1975) e Bobby Fischer (1943–2008). De fato, Tal é uma das unanimidades históricas das 64 casas, comparado em genialidade, criatividade e excentricidade aos também unânimes Paul C. Morphy (1837–1884) e ao já citado Fischer. Conhecido como o “mago de Riga” e dono de uma língua ferina, quando perguntado sobre seu estilo agressivo de jogo, Tal respondeu: “Há três tipos de sacrifícios: os corretos, os incorretos, e os meus”. Como a maioria dos grandes campeões do esporte, Tal confiava acima de tudo na sua própria capacidade de controlar uma situação surgida no tabuleiro de xadrez, contornando as dificuldades com maestria a fim de chegar a um desfecho favorável.

Mas, por que falar de Tal? O que as atitudes do enxadrista têm a acrescentar para uma análise dos rumos e das particularidades da ciência? 

Há muitas analogias possíveis entre os maneirismos dos grandes jogadores de xadrez e o comportamento dos cientistas. Diferentemente do jogo dos reis, a ciência nem sempre ganha com a excessiva autoconfiança dos seus praticantes – que por vezes mal escondem uma sede por reconhecimento midiático e celebridade instantânea. A complexidade do mundo natural é bem maior que o número de variantes possíveis em uma partida de xadrez e não pode ser mensurada em uma bancada de laboratório. Aos pesquisadores cabem responsabilidades que fogem ao falso determinismo de suas fórmulas e protocolos de trabalho. 

Parte dos cientistas acredita cegamente nos resultados de suas pesquisas e no seu absoluto controle sobre elas. Alguns o fazem por ingenuidade, outros por incompetência, alguns parecem nem mesmo se importar com os possíveis desdobramentos, futuros ou imediatos, das suas atitudes. Aliada à insensatez de parte dos pesquisadores vem a grande mídia, que divulga com desmedido entusiasmo os deslumbramentos científicos e pouco se presta à consulta de fontes fidedignas ou segundas opiniões. Os delírios do projeto Genoma, a utilização de células-tronco para pôr um fim às doenças que afligem o homem, os alimentos transgênicos... é longa a lista de áreas promissoras da biologia alardeadas como furos jornalísticos. As possíveis e prováveis consequências desses estudos, seus pormenores e idiossincrasias, as dificuldades surgidas e os falsos positivos geralmente ficam fora das primeiras páginas e dos pronunciamentos em horário nobre. Assim, concepções errôneas são propagadas, fornecendo combustível para questionamentos vazios e sem fim em torno de nada muito palpável.

É certo que o conhecimento científico deve ser levado ao grande público – a ciência é o escudo contra o obscurantismo, um facho de luz na escuridão de um mundo assombrado por demônios, na metáfora do astrônomo e divulgador da ciência Carl Sagan (1934–1996). Como diz David Shenk (1966– ), autor de O jogo imortal: o que o xadrez nos revela sobre a guerra, a arte, a ciência e o cérebro humano (publicado no Brasil em 2008), “É muito comum, nessa época fragmentada, pós-moderna e de verdades escorregadias, a reação de se negar a pensar e, em vez disso, cair num conjunto já estabelecido de crenças. Em suma: numa ideologia”. Entretanto, como qualquer atividade humana, a ciência tem sua própria sociologia, seus conflitos de interesse e contradições insolúveis que nunca sobem ao palco e que, quando muito, apenas se transformam em anedotas biográficas de livros nunca lidos. Como em um dramalhão televisivo, os bastidores do mundo científico escondem guerras de ego, brigas, vaidade, traições e, sobretudo, cobiça. A realidade da academia não destoa do mundo fora dela. Afinal, somos todos humanos.

Pesquisadores muitas vezes rendem-se a verbas vultosas oferecidas por empresas multinacionais ou governos para financiar projetos de grande monta. Organizam-se verdadeiras operações de guerra, com táticas publicitárias ferozes e “lavagem de cérebros”, para cooptar os corações e mentes do público e de quem quer que interfira com posições contrárias. Para os que insistem no embate resta o ostracismo ou o monólogo. 

O projeto Genoma humano, por exemplo, por muitos considerado a maior realização científica do século XX, a mais extraordinária aventura da ciência na atualidade, a busca pelo verdadeiro cálice sagrado, é apenas o reconhecimento das bases nucleotídicas que compõem o material genético do Homo sapiens, a nossa espécie. Em qualquer organismo vivo conhecido, o DNA é composto por quatro tipos de unidades básicas chamadas nucleotídeos: adenina, guanina, timina e citosina (respectivamente, A, G, T e C, no jargão da biologia molecular). A informação presente na dupla-hélice do DNA corresponde a um código criptográfico com apenas quatro variáveis que podem ser aglutinadas em infinitas combinações de mensagens. O que se fez até o momento no projeto Genoma foi reconhecer qual a sequência dos nucleotídeos no DNA da nossa espécie. Em linhas gerais, é como conhecer as letras impressas nas páginas de um livro imenso sem saber o que elas significam juntas ou em que língua foram escritas. 

O sequenciamento dos nucleotídeos prometido pelo projeto Genoma é apenas a etapa inicial de uma empreitada mais ampla, que visa ao conhecimento das expressões fenotípicas dos genes, das relações entre eles e da importância dos fatores internos (e não apenas genéticos) e externos (isto é, “ambientais”, em uma concepção ampla do termo) na determinação das características dos organismos vivos. Há muito trabalho a ser feito a partir dos resultados já obtidos. Muitos cientistas, entretanto, são céticos a respeito das possíveis consequências científicas e das reais intenções de empreendimentos desse porte. O eminente geneticista Richard Lewontin (1929– ), professor de zoologia da Universidade de Harvard, vê no projeto Genoma o esforço lobista de organizações voltadas mais para atividades financeiras e administrativas do que para a pesquisa básica em busca do conhecimento sobre o mundo natural. O futuro do Genoma, da clonagem e de outras áreas da biologia molecular não pode ser desvinculado de interesses comerciais.

Os alimentos transgênicos constituem outro exemplo claro de manipulação do público pela mídia e pelas empresas patrocinadoras. Esses alimentos são modificados através da inserção, no seu material genético, de porções de DNA de outras espécies, com vistas ao aumento do seu valor nutricional ou maior resistência a insetos e outros predadores naturais. Apesar dos aparentes benefícios da técnica, e assim como outros projetos megalomaníacos da biologia molecular, os transgênicos interessam muito mais às corporações internacionais do que à vasta população carente de comida. Lucro, controle da cadeia produtiva, mais lucro, vendas, dominação dos mercados. Ouvem-se poucas vozes importantes, parte delas abafada, a falar sobre os riscos e dúvidas sobre a introdução desses organismos geneticamente modificados no ambiente: não se sabe ao certo quão impactantes podem ser, tanto para a saúde animal (incluindo aí o homem) quanto para o equilíbrio das relações ecológicas interespecíficas. Ao grande público sobram os ditos imperiosos das autoridades, que se presumem titereiros debruçados sobre as cordas e o destino de suas criações. Esses exemplos, infelizmente, não esgotam o assunto.

A ciência não é capaz de chegar à certezas absolutas, mas busca se aproximar delas. É essa a razão do seu distanciamento dos dogmatismos religiosos e das crenças cegas. Aos pesquisadores, cabe reconsiderar suas percepções de grandeza e reconhecer que o poder e o controle em suas mãos é limitado. Suas verdades são transientes, visto que hipotéticas e baseadas nas evidências disponíveis. Não há como dominar em um laboratório todas as variáveis das equações da natureza, como Tal fazia com seus peões, cavalos e torres, e essa impossibilidade precisa ser considerada também pelo público não especializado como parte da ciência. 

Como qualquer outra atividade humana, a prática científica também apresenta interesses muitas vezes velados e apendiculares, quase como se os cientistas estivessem vislumbrando como arrancar um hipopótamo de ouro do meio do lamaçal enquanto escrevem artigos para publicação e solicitam financiamento para seus projetos de pesquisa. Apenas quando a população tiver conhecimento sobre todas as regras do jogo científico ela poderá cobrar a verdade por trás das promessas de tantos admiráveis mundos novos que aparecem a cada dia.

PS: Para os interessados, o “Hipopótamo de Tal” pode ser solicitado pelo e-mail charlesmorphy@gmail.com. Cada exemplar custa R$ 25,00 (+ R$3,00 de frete).