segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Taxonomia não é ufologia!


"Eu quero acreditar". Esse era o mote de um dos seriados mais icônicos dos anos 1990, Arquivo X. Semana a semana, os agentes do FBI Fox Mulder e Dana Scully se viam investigando o aparecimento de seres espetaculares, monstros pré-históricos redivivos, pés-grandes e organismos extraterrestres co-participantes de uma conspiração mundial de proporções quase inimagináveis. Eu achava tudo muito divertido e acompanhava fielmente a série, ainda que o criador Chris Carter não tivesse preocupação alguma com precisão científica.

Recentemente, alguns taxonomistas ressuscitaram o slogan "Eu quero acreditar" em um contexto distinto: eles têm defendido a possibilidade de se descrever novas espécies mesmo ser terem em mãos qualquer material biológico fisicamente palpável. Bastaria uma foto e a indicação de um especialista, sugerindo que a espécie fotografada não é conhecida pela ciência, para justificar um novo trabalho de descrição taxonômica. Coleta de material biológico? Não é necessário! Depósito de espécimes em museus e coleções de história natural? Dispensável! Sequenciamento de material genético, dissecção de partes anatômicas importantes para a diagnose da espécie, análise do comportamento do organismo no ambiente natural? Detalhes demais para um mundo de demandas tão aceleradas...

Na taxonomia tradicional, é prática corriqueira a coleta de espécimes através de técnicas como armadilhas montadas em áreas naturais ou procedimentos ativos (na entomologia, ramo da zoologia que trata do estudos dos insetos, usamos puçás no campo, que são redes de "caçar borboletas"). Os indivíduos coletados, caso não sejam identificados como nenhuma espécie conhecida, podem ser descritos como novas espécies, recebendo um nome - formado pelo gênero mais um epíteto específico - a partir de regras de nomenclatura derivadas daquelas criadas por Carolus Linnaeus no século XVIII.

As descrições de espécies dependem da observação pormenorizada dos indivíduos coletados. Estas podem ser realizadas a olho nu, em microscópios ópticos, eletrônicos ou estereomiscroscópios, muitas vezes após dissecções dos espécimes e montagem das suas partes em lâminas permanentes ou temporárias. Tal trabalho consome muito tempo porém é imprescindível para identificações e descrições precisas.

A única forma de garantir que as “novas espécies” descritas não existam apenas no mundo das ideias é estudando os indivíduos que serviram de base para as descrições. Sem eles, a zoologia e a botânica sempre se remeterão à autoridade: a existência de uma espécie dependerá de se acreditar (ou não) na idoneidade do taxonomista e na pertinência da sua fonte única de evidências primárias. Só que não é difícil encontrar pesquisadores inidôneos...

Neste ano de 2016, um entomólogo russo - Sergey Viktorovich Pushkin - publicou uma nova espécie de besouro da família Dermestidae. Ele a nomeou Thaumaglossa zhantievi. No trabalho original (que pode ser baixado AQUI), há uma foto da região dorsal de um espécime e uma ilustração da terminália (a porção reprodutiva, fundamental para a diagnose de muitos insetos) (Figura 1).

Figura 1: A "nova espécie" Thaumaglossa zhantievi.

Ainda que a descrição seja demasiado sintética, seria válida. Está de acordo, por exemplo, com o que define o Código Internacional de Nomenclatura Zoológica. No entanto, a foto utilizada no artigo de Pushkin como representativa dessa nova espécie foi simplesmente roubada de um outro artigo publicado anos atrás, que descrevia a espécie de dermestídeo Thaumaglossa laeta (as fotos do material utilizado nesta descrição podem ser vistas AQUI). Pushkin COPIOU a foto de T. laeta, fez algumas pequenas alterações através de algum software de edição digital de imagens, e inseriu no seu próprio trabalho. Não contente, a ilustração da terminália da "espécie nova" T. zhantievi também foi roubada de outro trabalho, que descrevia Thaumaglossa mroczkowskii (Figuras 7 e 9 do artigo disponível AQUI).

Em suma: o entomólogo russo simplesmente INVENTOU uma nova espécie! Ele surrupiou a foto de uma espécie publicada e já descrita, deu uma arrumada no Photoshop (deixando o espécime simétrico), roubou a ilustração de uma terminália de outra espécie, fez o mesmo procedimento no Photoshop e... voilá! Mais uma "espécie nova" para emporcalhar a literatura, publicada em uma revista com índice de impacto e revisão-por-pares (ou ímpares já que deixaram passar tamanho absurdo).

A recente defesa da utilização de fotografias (sem coleta, sem análise de material de referências) como evidência suficiente para a descrição de novas espécies presta um desserviço à prática taxonômica. Abre precedentes para picaretagens como a de Pushkin e pode ser fatal para nossos esforços em direção ao aumento do conhecimento da biodiversidade e para a conservação biológica.

Por mais que estejamos vendo todos os dias os ambientes naturais se deteriorando - quando não completamente destruídos -, ainda que muitas espécies estejam sendo extintas (uma delas pode ter perecido no exato momento em que você lê esse breve ensaio), nada justifica a frouxidão científica. Descrever espécies não é um jogo em que ganha aquele cientista, grupo de pesquisa ou país que nomeia a maior quantidade de novos táxons. Não estamos nos Jogos Olímpicos da taxonomia. É preciso seriedade e apreço por práticas que garantam a repetibilidade nos laboratórios, permitindo a outros pesquisadores e interessados conhecer o máximo possível sobre uma espécie. Fotografias não são suficientes - elas não são substituto da realidade e sim uma representação dela.

"Eu não quero acreditar" que uma espécie descrita existe de fato para além daquilo que foi publicado em um artigo científico. "Eu quero saber"! E, para isso, não dá para contar apenas com imagens. Taxonomia não é ufologia, é ciência. Deve ser tratada assim sempre.

Referências
Amorim, D.S. et al. 2016. Timeless standards for species delimitation. Zootaxa, 4137(1), 121-128.
Pape, T. et al. 2016. Taxonomy: species can be named from photos. Nature, 537, 307.
Santos, C.M.D. et al. 2016. On typeless species and the perils of fast taxonomy. Systematic Entomology, 41, 511-515.
Spineli, P.K. 2010. Mais humano que humano: o cyberpunk na fotografia de Blade Runner. Revista Olhar, 22, 162-186. 

quarta-feira, 4 de maio de 2016

Breves resenhas: O mal ronda a Terra

Desde 2013, sou representante docente no Conselho Universitário da universidade em que leciono. Um dia desses, apresentando o relato de uma proposta de pós-graduação neste conselho, sugeri que os coordenadores do projeto tomassem bastante cuidado com a produção científica/acadêmica dos seus docentes credenciados e que levassem em consideração a possibilidade de reduzir o número de disciplinas ofertadas, na tentativa de garantir uma alocação didática mais eficiente nos anos vindouros. Por isso, fui taxado de “direitista” e “alinhado com o imperialismo exploratório eurocentrista” por uma das representantes deste mesmo conselho, particularmente encarniçada (e, como de praxe entre os extremistas de qualquer matiz, sem nenhuma finesse ou humor), ainda que minha sugestão de encaminhamento tenha sido pela aprovação da proposta de pós-graduação.

O historiador Tony Judt (1948–2010) levantou-se inúmeras vezes contra perspectivas anacrônicas como a citada acima, dada a sectarismos e ausência completa de empatia e generosidade para com o alheio. Para Judt, é preciso aprender a lidar com as necessidades comuns rejeitando o individualismo niilista da direita e o socialismo deturpado do passado. Em seu último livro publicado em vida, “O mal ronda a Terra: um tratado sobre as insatisfações do presente” (de 2010), ele discute a necessidade de se abandonar a fé cega no mercado e de colocar o respeito à igualdade de direitos acima de qualquer coisa. Seguem abaixo alguns trechos da obra:
O caráter materialista e egoísta da vida contemporânea não é inerente à condição humana. (p. 16)
A última vez que um grupo de jovens expressou comparável desânimo pelo vazio de suas vidas e da frustrante falta de sentido do mundo foi nos anos 1920: não por acaso os historiadores falam de uma geração perdida. (p.17)
O governo pode desempenhar um papel maior em nossas vidas sem ameaçar a liberdade. (p. 19)
A desigualdade é corrosiva. Faz com que as sociedades apodreçam por dentro. (p. 30)
Quanto mais nos tornamos iguais, mais acreditamos que a igualdade é possível. (p. 32)
O crescimento econômico beneficia a todos, mas privilegia desproporcionalmente uma pequena minoria em posição de explorá-lo. (p. 33)
[O pensamento econômico hoje] decreta que busquemos nossos interesses (definidos como vantagens econômicas maximizadas) com o mínimo de referência a critérios externos como altruísmo, renúncia, gosto, hábitos culturais ou propósitos coletivos. (p. 44-45).
O medo e o descontentamento das classes médias deram origem ao fascismo. (p. 58)
Todos os empreendimentos coletivos exigem confiança (...) os humanos não conseguem atuar juntos a não ser suspendendo a desconfiança que sentem uns pelos outros. (p. 67)
O individualismo da nova esquerda não respeitava nem o propósito coletivo nem a autoridade tradicional (...) o que lhe restava era o subjetivismo do interesse e do desejo privados – medido de forma pessoal. Isso, por sua vez, conduzia ao recurso do relativismo estético e moral: se algo é bom para mim, não me cabe determinar se é bom ou mal para outros – e muito menos impor isso a eles (p. 90)
O único motivo para os investidores privados adquirirem empresas publicas aparentemente ineficientes é a eliminação ou redução de sua exposição ao risco, bancada pelo Estado (...) como jamais se permitira a quebra de serviços indispensáveis, elas podiam correr riscos, gastar mal e desbaratar recursos à vontade, sabendo que o governo acabaria pagando a conta. (p. 108-110).
Ao reduzir as responsabilidades e possibilidades do Estado, minamos sua situação pública. (p. 113-114).
Qualquer sociedade (...) que destrói a estrutura de seu Estado logo se vê ‘desconectada, reduzida ao pó da individualidade’. (p. 116)
Uma consequência impressionante da desintegração do setor público tem sido a crescente dificuldade em compreender o que temos em comum com outras pessoas. (p. 117)
Se os bens públicos – serviços, espaços, instalações – se desvalorizam, perdendo importância aos olhos dos cidadãos, e dão lugar a serviços privados disponíveis só para quem pode pagar, então perdemos o senso de que os interesses comuns e as necessidades comuns devem ter prioridade sobre as preferências privadas e a vantagem individual. (p. 125)
Numa era em que os jovens são estimulados a maximizar o interesse e o progresso individuais, o incentivo ao altruísmo e até ao bom comportamento se torna obscuro. (p. 125)
Se não respeitamos os bens públicos; se permitimos ou estimulamos a privatização nos espaços, recursos e serviços públicos; se apoiamos com entusiasmo a propensão de uma geração mais jovem a cuidar exclusivamente de suas próprias necessidades, então não deveremos nos surpreender com a progressiva redução do engajamento cívico no processo público de tomada de decisões. (p.126)
Por que temos tanta certeza de que planejamento ou taxação progressiva, ou propriedade coletiva de bens públicos, são restrições intoleráveis à liberdade? Por outro lado, por que câmeras de televisão de circuito fechado, ajuda estatal para bancos de investimentos “grandes demais para quebrar”, telefones grampeados e guerras custosas no exterior são ônus aceitáveis para um povo livre? (p. 144)
Há um preço a pagar pelo conformismo. Um círculo fechado de opiniões ou ideias no qual o descontentamento ou a oposição jamais são permitidos – ou aceitos apenas dentro de limites predeterminados e artificiais – perde sua capacidade de reagir a novos desafios com energia ou imaginação. (p. 147)
Repúblicas e democracias só existem em virtude do engajamento de seus cidadãos na condução dos negócios públicos. Se cidadãos ativos e preocupados descartam a política, eles abandonam a sociedade aos mais medíocres e venais servidores públicos. (p. 153)
Politicamente falando, vivemos na era dos pigmeus. (p. 154)
Os ricos não querem a mesma coisa que os pobres. Quem depende do trabalho para sustentar a família não quer a mesma coisa que quem vive de investimentos e dividendos. Quem não precisa dos serviços públicos – pois pode adquirir transporte, educação e segurança privadas – não busca o mesmo que as pessoas que dependem exclusivamente do setor público. (...) As sociedades são complexas e convivem com interesses conflitantes. Afirmar o contrário – negar distinções de classe, riqueza ou influência – é só um jeito de privilegiar um conjunto de interesses em detrimento de outro. (p. 157)
Acesso desigual a recursos de qualquer tipo – dos direitos humanos à água – é o ponto de partida de qualquer crítica progressista verdadeira do mundo. Mas a desigualdade não é apenas um problema técnico. Ela ilustra e exacerba a perda da coesão social – a ideia de morar num conjunto de condomínios fechados cujo principal propósito é afastar outras pessoas (menos afortunadas que nós) e restringir nossos privilégios a nós a nossas famílias tornou-se a patologia da época e a maior ameaça à saúde de qualquer democracia. (p.170-171)
A volta à ditadura pode ser sedutora em países nos quais a tradição autoritária mantém considerável apoio silencioso. (p. 199)
Todos os argumentos políticos precisam começar por uma avaliação de nossa atitude não apenas em relação aos sonhos de progresso futuro mas também das conquistas passadas: nossas e de nossos antecessores. (p. 209)
Referência:
Judt, T. 2010. O mal ronda a Terra: um tratado sobre as insatisfações do presente. Tradução: Celso Nogueira. Editora Objetiva, Rio de Janeiro.

Ilustração de Joe Ciardiello (www.nytimes.com)

quinta-feira, 24 de março de 2016

Breves resenhas: Histórias impublicáveis sobre trabalhos acadêmicos e seus autores


Em 2008, a Editora Planta publicou um simpático livro intitulado “Histórias impublicáveis sobre trabalhos acadêmicos e seus autores”. Nele, o professor da Universidade Estadual de Londrina Efraim Rodrigues discute a relação orientador-aluno, as ferramentas fundamentais de um trabalho científico-acadêmico e como estruturá-lo perante a miríade de idéias e dificuldades do pós-graduando. Tudo isso em uma linguagem atraente e amigável, sem tecnicismos desnecessários.

É uma leitura indicada para todos aqueles que passam manhãs, tardes e noites nas bancadas de laboratórios, em escrivaninhas e nos seus computadores pensando e produzindo ciência. Professores e alunos têm muito a ganhar das dicas dadas por Rodrigues nesse livro.

Seguem alguns trechos [cuidado! Contém spoilers!]:
Seu candidato a orientador quer, entre os inúmeros candidatos que pulam de galho em galho, um que realmente se comprometa com o investimento que será feito nele, e que retornará para o programa de pós-graduação um trabalho no prazo exigido e da maior qualidade, tudo isso realizado com a menor assistência possível. (p. 4)
O aluno admira o orientador e é difícil para ele crer que seu orientador possa saber menos que ele sobre o trabalho. A se somar a isto, bons orientadores têm vários orientados, aulas, administração universitária, consultorias... Mais e mais detalhes para lembrar. Um belo dia seu orientador não lembra quantas repetições tem seu experimento e, cinco minutos depois, o aluno está no Orkut [o livro é de 2008, vamos dar um desconto!] dizendo que seu orientador tem amnésia aguda. (p. 11)
[É imprescindível] adquirir uma casca, uma proteção contra o lado destrutivo e desanimador da crítica. (...) O maior desafio em relação às críticas é manter a convicção de que seu trabalho só melhora com elas. (...) Anote as críticas porque seu cérebro não irá fazê-lo. (p. 17-19)
A crítica que vem de fora interage com a idéia que temos de nós mesmos e de nosso trabalho, às vezes de maneira explosiva. As pessoas mais sensíveis a comentários negativos costumam ser aquelas que já possuem um complexo de inferioridade. Quando a mensagem que vem de fora reforça esta imagem interna negativa, o resultado pode ser forte a ponto do aluno abandonar seu trabalho, assim como todo o investimento anterior. (...) Quando algo desce do limbo platônico, perfeito, que só existe na cabeça das pessoas, ele passa a ter as imperfeições deste nosso mundo real e passa a receber críticas. (p. 21) 
Um bom trabalho acadêmico vai exigir tanto de você quanto um filho pequeno. (p. 27) 
Uma outra válvula de escape para almas ansiosas é a procrastinação. (...) é infinita a nossa criatividade para arrumar compromissos inadiáveis. Uma solução que costumo adotar é mudar de local para me dedicar a trabalhos mais sérios. Quando você vai passar alguns dias em um local diferente para organizar as idéias e escrever, você naturalmente se obriga a voltar com mais do que foi e medir o quanto fez nesses dias contados, tão difíceis de subtrair de seu cotidiano. (...) Muitas vezes a procrastinação é causada pela insegurança em relação aquilo que estamos escrevendo. Uma solução neste caso é permitir-se escrever de qualquer jeito (...) só para vencer a inércia. É sempre possível editar depois o que escrevemos nestas horas de desespero. (p. 32) 
O ambiente acadêmico em que seu trabalho é elaborado determina muito do que ele se tornará. Se o líder deste grupo é um pesquisador de alta produtividade, então você terá como colegas os melhores alunos. Haverá alunos de doutorado, mestrado e graduação atuando em conjunto, fazendo estas idéias todas fluírem de um lado para outro, principalmente de cima para baixo, para benefício óbvio de quem está começando mas também de quem já está há mais tempo e precisa acumular experiência em liderar pessoas. Frequentemente haverá gente de fora querendo vir conhecer o que está acontecendo ali e também trazendo idéias novas. (p. 37) 
Minha política com meus orientandos sempre foi deixá-los muito soltos porque não acredito que trazê-los em rédea curta ajuda seu amadurecimento. (...) Aprender dói e toma tempo. (p. 42) 
O fato de você ter um projeto não implica que você terá que levá-lo até o fim da forma como projetou. Tendo um projeto, você anda em uma direção. (...) Sem projeto, você fica andando em círculos ao redor do lugar de onde saiu. (p. 57) 
Chaplin dizia que a forma mais elevada de arte é simplificar o assunto mais importante do mundo ao ponto que todos possam apreciá-lo e compreendê-lo. (p. 92-93) 
Não coloque “obrigado” no último slide, nem somente o seu e-mail. Seu último slide deve conter as idéias que sua platéia vai levar para casa. O último slide deve ficar lá enquanto você responde às perguntas. Quanto mais tempo, mais ele cumprirá sua função. (p. 95) 
A divulgação de seu trabalho acadêmico faz parte de algo mais amplo, que é o marketing pessoal. Estar na mídia faz você ser visto e abre possibilidade de atuação para você. Portanto, a divulgação do seu trabalho deve começar antes de concluí-lo e não terminar jamais. (p. 100) 
Para Vulcano, o Deus da forja na mitologia grega, conhecer pessoas é desnecessário porque sua ênfase é toda em seu trabalho. (...) Na mitologia grega, Mércurio é o Deus que transita entre mundos e faz a comunicação entre eles. (...) O trabalho acadêmico, ao menos em sua elaboração, pede mais de Vulcano que de Mercúrio. (p. 105) 
Casamentos podem ser desfeitos mas um trabalho acadêmico será seu e você será dele até mesmo depois que a morte os separe. (p. 107) 
As pessoas só lerão seu trabalho quando se interessarem, nesta ordem, pelo título, palavras-chave e resumo. (...) O título é o melhor, menor e mais visível resumo de seu trabalho. (p. 127) 
A resposta: “Meu orientador disse para fazer assim”, assim como suas variantes, é desagradável na iniciação científica, feia no mestrado e vergonhosa no doutorado. (...) Você tem que conseguir defender os métodos que utilizou. (p. 129) 
O fim absoluto do trabalho acadêmico não existe. Seria possível continuar a escrever um único trabalho por toda a vida, por vezes burilando à beira da perfeição, em outros momentos rasgando tudo e começando do zero, fazendo grandes progressos em alguns momentos e quase parando em outros. (...) Trabalho acadêmico algum fica absolutamente pronto. (p. 155)
Referência:
Rodrigues, E. 2008. Histórias impublicáveis sobre trabalhos acadêmicos e seus autores. Editora Planta, Londrina.

Imagem: https://www.eff.org/

sexta-feira, 4 de março de 2016

JEsUs One: a pseudo-ciência do design inteligente às portas da academia


O dia 14 de dezembro é especial para mim. É dia de aniversário da minha mulher e também do meu irmão. Desde o ano passado, esse dia também deverá ser lembrado pela comunidade científica, especialmente pelos pesquisadores que trabalham em laboratórios voltados às ciências biológicas. Foi no dia 14 de dezembro de 2015 que a conceituada revista PLoS One (acrônimo para Public Library of Science One) aceitou para publicação o artigo “Biomechanical Characteristics of Hand Coordination in Grasping Activities of Daily Living” – em tradução livre “Características Biomecânicas da coordenação da mão em atividades de agarramento na vida diária” – de autoria de Ming-Jin Liu, Cai-Hua Xiong, Le Xiong e Xiao-Lin Huang. A PLoS One é conhecida por seu alto índice de impacto e velocidade no peer-review, o processo de revisão pelos pares, base da ciência contemporânea, a partir do qual artigos submetidos para revistas científicas são avaliados por outros pesquisadores da área, que emitem pareceres favoráveis ou não à publicação.

É de se esperar que revistas científicas bem qualificadas tenham um sistema de peer-review sério e que seus editores tomem extremo cuidado antes de aceitarem um trabalho para publicação. A PLoS, desde meados desta primeira semana de março, tem sido atacada por todos os flancos por conta do artigo de Liu e seus colaboradores. Em linhas gerais, o trabalho tem entre suas conclusões a ideia de que a habilidade manual humana extraordinária revela (pasmem!) o design divino. Se somos tão hábeis em agarrar objetos, clicar em sites maliciosos e digitar infindáveis mensagens no Whatsapp, o artigo da PLoS One sugere fortemente que isso tudo é obra de Deus. 

O resumo do artigo é bastante revelador (abaixo em tradução livre): 
A coordenação das mãos permite aos humanos ter controle para executar várias tarefas na vida diária com muitos graus de liberdade. Um fator importante que contribui para esta importante habilidade é a arquitetura biomecânica complexa da mão humana. No entanto, estabelecer uma clara ligação funcional entre a arquitetura biomecânica e coordenação das mãos é um desafio. Não se entende quais características biomecânicas são responsáveis ​​pela coordenação das mãos e qual o efeito específico que cada característica biomecânica tem. Para explorar esta ligação, nós inicialmente inspecionamos as características da coordenação das mãos durante as tarefas diárias através de uma análise estatística dos dados cinemáticos, que foram coletados a partir de trinta indivíduos destros durante diferentes tarefas que envolviam o ato de agarrar. Então, a ligação funcional entre a arquitetura biomecânica e a coordenação das mãos foi estabelecida por conta da clara causalidade correspondente entre as características conectivas tendíneas da mão humana e as características coordenadas durante as atividades diárias de agarramento. A ligação funcional explícita indica que a característica biomecânica da arquitetura conectiva tendínea entre músculos e articulações é o design adequado feito pelo Criador para realizar uma infinidade de tarefas diárias de uma maneira confortável.
Repito: isso foi publicado em uma revista científica tida como de boa reputação e elevado fator de impacto. Comparem agora com o texto abaixo:
[A evolução] tenta explicar a origem das espécies. Os seres vivos são formados por órgãos eficientes, como o coração, pulmões e olhos. Também, no nível microscópico, vemos dentro das células ‘máquinas’ incrivelmente projetadas. Qual a origem desses projetos? (...) De onde vêm os mecanismos? (...) Num ecossistema, a interdependência pode ser vista numa escala imensa. Um ecossistema é um ambiente com uma comunidade talvez de milhares de tipos de animais, plantas, bactérias e fungos. Todos os animais dependem das plantas como fonte de alimento e oxigênio, e a maioria das plantas floríferas depende dos animais. Embora os ecossistemas sejam extremamente complexos e os organismos neles sejam frágeis, eles podem sobreviver por milênios. Mesmo quando um ecossistema complexo é afetado por poluição, ele se recupera assim que a fonte da poluição é eliminada. Quando penso na capacidade de recuperação do inteiro sistema de vida na Terra, tenho certeza de que a vida foi projetada por Deus.
Este trecho saiu no site da revista Despertai!, um dos veículos de divulgação dos Testemunhas de Jeová. No meu entender, a lógica subjacente a ambas as passagens é a mesma (e a conclusão, idem).

Dado o burburinho da comunidade científica – que postou em massa comentários no site da PLoS One, muitos deles vindos de importantes editores e revisores da própria revista –, o artigo de Liu e seus colaboradores foi retratado ontem (03/03/2016). O periódico se desculpou e prometeu apurar em que passo (ou passos) do processo de peer-review houve equívocos (talvez fosse melhor o artigo ter sido revisado por “ímpares”, que certamente analisariam com mais cuidado seu conteúdo e linguagem). Da publicação no início de janeiro à retratação, foram pouco menos de dois meses. A despeito dos problemas vários, há vantagens no mundo digital em que tudo acontece em velocidade warp e dobra cinco!

O artigo de Liu e colaboradores é uma tentativa óbvia de incutir o discurso criacionista do Design Inteligente (DI) no meio científico acadêmico sério. Como discutido aqui no blog, o DI foi uma tentativade grupos religiosos inserirem o "criacionismo científico" no ensino de ciências dos Estados Unidos. O movimento foi criado no final dos anos 1980 pelo advogado Phillip Johnson, professor de direito em Berkeley (as credenciais “científicas” de Johnson são no mínimo questionáveis: além de não aceitar a teoria evolutiva, ele também negava que o vírus HIV era causa da AIDS). O DI não se fundamenta em evidências e teve todos seus débeis argumentos desconstruídos nas últimas décadas pela comunidade científica.

Os defensores do DI postulam a ideia do criacionismo científico (!), baseado na pretensa existência de “complexidades irredutíveis” nos sistemas biológicos. Segundo o DI, a evolução gradualista não seria possível e, assim, todos os sistemas vivos não teriam se originado por etapas através de um mecanismo lento e gradual como o da seleção natural, e sim a partir do blueprint de um designer ou projetista, um Criador (!), que tivesse pensado, a priori, no encaixe perfeito entre todos os componentes constituintes da vida no universo. O DI retoma a Teologia Natural de William Paley, anterior à publicação do Origem das Espécies (1859) de Charles Darwin, segundo a qual as relações entre as partes orgânicas dos seres vivos e entre estes no ambiente seriam evidência irrefutável para um deus interventor responsável por toda a criação.

Não é crime acreditar no Design Inteligente – assim como também não deve ser colocado atrás das grades os amantes da ufologia, da astrologia ou os “teóricos” dos alienígenas do passado. O que assusta não é a existência de panfletos defendendo a realidade de um designer sobrenatural e sim a interferência dessa visão pseudo-científica – com a tentativa de forçar a publicação de trabalhos como o da PLoS One – na prática acadêmica corriqueira. É fato: não se pode misturar maçãs e laranjas. O Design Inteligente NÃO é ciência e, portanto, NÃO deve ser tratado como tal. Assim como não esperamos encontrar um artigo discutindo as previsões para cada signo do zodíaco em revistas do tipo Nature ou Science (que têm grande impacto entre os cientistas), também não imaginamos que conclusões pseudo sobre DI apareçam em periódicos sérios como esses. O Design Inteligente é retórica criacionista e uma forma tacanha de introduzir o literalismo bíblico nas ciências.

O único ponto positivo desse imbróglio com a PLoS One foi a certeza de que a comunidade científica mundial, cada vez mais conectada (e antenada na importância de mídias sociais para a disseminação do conhecimento), está atenta às más práticas editoriais. Isso é um alento em um mundo repleto de ignorância e de crenças cegas em que ideologias e partidarismos sobrepõem-se ao ceticismo e às evidências.


Foto de Roy Winkelman. Fonte: http://etc.usf.edu/clippix/picture/gorilla-looking-at-hands.html 

Referência:
https://www.jw.org/pt/publicacoes/revistas/